Num dos primeiros dias da COP-18, no Qatar, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês) fez uma apresentação do seu relatório especial, o SREX, destinado ao gerenciamento de risco de eventos extremos e desastres para adaptação às mudanças climáticas. Como todo material do IPCC, o SREX está disponível ao público por intermédio deste link.
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Imagem de satélite de Sandy, em 29 de Oubtubro de 2012 |
Eventos extremos são aqueles que não ocorrem ordinariamente e incluem uma variedade de fenômenos. Aqueles ligados aos processos climáticos incluem secas severas, tempestades intensas, furacões, cheias, ondas de calor, etc. Algumas perguntas geralmente feitas são: a ocorrência desses fenômenos se tornou mais frequente? Eles se tornaram mais intensos? Como eles devem mudar em um clima mais aquecido? Que mecanismos físicos estão por trás dessas mudanças? Eventos como o furacão Sandy são causados pelas mudanças climáticas?
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Incêndio florestal na Rússia, associado a uma onda de calor |
Vamos começar pelo final. A primeira coisa que precisa ser esclarecida são os próprios conceitos de tempo (no sentido meteorológico) e de clima. O tempo se refere à condição momentânea, a um único evento, à temperatura de ontem, à chuva prevista para amanhã. O clima se refere ao comportamento estatístico de mais longo prazo, isto é, se a estação úmida produziu um total de chuvas abaixo ou acima da média ou se determinado período de 30 anos apresentou temperaturas abaixo ou acima daquele que lhe antecedeu. O clima envolve o número de furacões de determinada intensidade em uma década e quão intensa é a seca que ocorre em um a cada dez anos em determinada região.

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Nuvem de tempestade no sul da Alemanha Foto de Jens Hackmann |
E como é esse "doping" atmosférico? Vamos esclarecer esse ponto e responder de uma vez à penúltima e à antepenúltima perguntas. Eventos extremos tendem a se modificar por um motivo muito simples: uma atmosfera mais quente é capaz de conter mais vapor d'água do que uma atmosfera mais fria, conforme a chamada "Equação de Clausius-Clapeyron". O nome pomposo, esconde o fato de essa idéia ser bastante elementar, se pensarmos sobre o que acontece quando tiramos um objeto da geladeira e há condensação em torno dele (a água que aparece estava no ar, na forma de vapor). Num clima mais quente, tanto secas quanto chuvas extremas tendem a se intensificar. Nuvens são formadas por gotinhas e/ou cristais de gelo minúsculos, que aparecem quando o vapor se condensa em torno de partículas ainda menores, suspensas no ar, os chamados aerossóis (grãozinhos de sal, poeira, pólen, etc.). Em períodos e/ou localidades tipicamente secos, a atmosfera mais aquecida demanda mais vapor para que a condensação (e portanto a formação das nuvens) se inicie, então as secas tendem a ser mais severas. Por outro lado, nas regiões e/ou períodos úmidos, a quantidade maior de vapor que a atmosfera mais quente reteve, ao ser transportado para cima, vai dar origem a nuvens com mais água em estado líquido e/ou sólido. O resultado: chuvas mais intensas, tempestades mais rigorosas, enchentes mais severas. Aliás, este é um bom momento para esclarecer um ponto importante: em locais mais frios, no inverno, ao se aquecer a atmosfera, o efeito causado pela presença de mais vapor d'água é a tendência a nevascas maiores. É, portanto, ridículo (para dizer o mínimo), quando alguém quer negar as mudanças climáticas apresentando a ocorrência de grandes nevascas como argumento.
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Enchente em New Orleans, causada pelo furacão Katrina |
O que já se sabe é que a estatística de alguns fenômenos extremos já se alterou por conta da mudança climática ocorrida. Já houve, segundo o SREX, com razoável confiança, um aumento geral da intensidade das ondas de calor em vários continentes, especialmente Europa e América do Norte, desde meados do século XX. Nesses locais, também se constatou o aumento do número de eventos de precipitação intensa no mesmo período, enquanto na África e em partes da Austrália, constatou-se o agravamento das secas. Os modelos climáticos como um todo apontam, no futuro para uma exacerbação das ondas de calor, das secas e dos eventos extremos de precipitação em praticamente todo o planeta. Em outros casos, como o dos ciclones tropicais (furacões e tufões), as tendências observadas não são tão claras, mas há indícios de que a frequência de ciclones mais intensos (como o Katrina) aumente, ainda que o total de tempestades não mude substancialmente.
O caso de ondas de calor é bem ilustrado pela figura ao lado, que mostra como gradualmente, década após década, houve um deslocamento na distribuição de ocorrência de temperaturas no sentido de tornar eventos quentes mais frequentes (o número de eventos quentes ou frios é proporcional à área pintada em vermelho ou em azul, respectivamente), bem como de fazer surgir eventos extremos do tipo onda de calor com bastante recorrência.

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Resultado da passagem de Sandy pelo Haiti |
Por fim, o que não pode ser esquecido é que esses efeitos dos eventos extremos não se distribuem ao acaso. Não é um simples dado alterado ou uma mera roleta viciada. A distribuição dos impactos das mudanças climáticas em geral e dos eventos extremos, em particular, está intrinsecamente ligada à desigualdade, de diversas ordens: nacional, de classe, de geração, de gênero, de etnia. De 1970 a 2005, 95% das mortes associadas a desastres naturais ocorreram em países em desenvolvimento. Na Europa, as ondas de calor atingem principalmente a população idosa mais pobre, como em 2003, quando quase 15 mil pessoas morreram na França, a maioria de pessoas de idade avançada em casas e asilos sem ar condicionado. A elevação do nível do mar está ameaçando nações, culturas e etnias inteiras, impondo uma imigração forçada, na medida em que o oceano lentamente avança sobre o território de países insulares e em que o clima e a devastação encurralam povos indígenas. O peso das secas, como discutido em outro texto, recorrentemente recai sobre ombros femininos e sobre as crianças. Tempestades como Sandy desnudam de uma vez a desigualdade nacional e de classe de forma cruel, com as 51 mortes no Haiti evidenciando a vulnerabilidade de um país atingido anos antes por um terremoto e que tinha muitos milhares de pessoas ainda habitando barracos de lona. Na Jamaica e nos EUA, moradores de rua e imigrantes ilegais preferiram enfrentar Sandy de peito aberto a procurar abrigos, temendo serem presos. Também nos EUA, onde 125 morreram em função dessa tempestade, os mais abastados puderam contar com os prêmios de seguro contra enchente. À maioria, com menos recursos, coube apenas juntar os destroços de seus lares inundados e devastados pela força da água e dos ventos.
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