domingo, 25 de novembro de 2012

As Mudanças Climáticas e as Cidades

Evento extremo em 22/06/2012, em Fortaleza

Como tenho afirmado em diversos textos, a questão climática põe em evidência, como poucas, a desigualdade em escala mundial. Os capitalistas, os ricos, os países centrais são, historicamente, aqueles que emitem gases de efeito estufa em grande escala. O habitante médio de países como os EUA, o Canadá e a Austrália apresenta uma “pegada” de carbono mais de 100 vezes maior do que a média dos habitantes de Moçambique, Somália, Afeganistão, Mali, Etiópia... E de maneira cruel, os impactos das mudanças climáticas tendem a incidir de forma muito mais intensa precisamente sobre os pobres dos países pobres; sobre aqueles que não se beneficiaram do “desenvolvimento” proporcionado pelo desvario fóssil.
A relação entre o clima e os assentamentos humanos é multifacetada e
mesmo a variabilidade natural do clima já é suficiente para trazer impactos importantes sobre as cidades. A ocorrência de eventos extremos de precipitação – bem mais relevantes sobre as cidades localizadas nos trópicos, como Fortaleza do que variações de temperatura – geralmente evidencia os típicos problemas dos assentamentos urbanos, ao colocar em risco as vidas de moradores de áreas próximas a rios, morros e encostas, ao amplificar o caos no transporte, ao criar condições para proliferação de vetores associados a doenças epidêmicas. Outro aspecto importante a ser considerado são as migrações decorrentes de eventos climáticos como grandes secas e enchentes que hoje e no passado, levam ao deslocamento de pessoas, não raro de áreas remotas, para os grandes assentamentos urbanos. Evidentemente, alterações nos padrões climáticos podem potencializar esses impactos e introduzir outros novos.
Neste ponto, cabe assinalar que a relação entre as mudanças climáticas e as cidades é uma via de mão dupla, que envolve, além dos impactos mencionados, o papel central que as próprias cidades cumprem nas alterações do clima (o que inclui a escala local, mas que é fundamentalmente relevante para a escala global).
Daí, o primeiro aspecto que consideraremos é a contribuição urbana para as emissões de gases de efeito estufa (com destaque para o dióxido de carbono, mas incluindo também o metano, o óxido nitroso e outros).
Cerca de metade da humanidade vive em cidades. Isso por si só já é um indicativo da grande contribuição que os assentamentos urbanos trazem para a emissão de gases de efeito estufa. Mas a contribuição dos centros urbanos para a elevação da concentração desses gases não pode ser tratada de forma linear. Por exemplo, nas cidades se concentra o consumo e, portanto, a geração de resíduos sólidos, que leva a emissões elevadas de metano.
O setor de transportes, seja interno às próprias cidades, seja na forma de ligação entre estas e as áreas mais remotas também é relevante. Globalmente, ele responde por mais de um quarto das emissões antrópicas de gases de efeito estufa. Neste aspecto, cabe destacar o peso do automóvel nas emissões. Estimativas mundiais dão conta que veículos leves respondem por 44,5% da energia utilizada no setor de transporte,  quase o dobro dos caminhões (leves e pesados), o quádruplo do setor aéreo e mais de sete vezes a dos ônibus. Apesar de haver diferenças entre os rendimentos dos motores de veículos de diferentes naturezas, isso já dá uma ideia da importância do transporte particular nas emissões globais, o que impõe que se repense imediatamente a questão da mobilidade urbana. O transporte coletivo, as ciclovias, etc. devem ser incentivados, em detrimento do transporte individual, especialmente os carros de luxo e de mais alta cilindrada. A radical coletivização do processo de transporte, enfim, precisa ser acompanhada de uma ainda mais radical descarbonização, ou seja, a substituição da fonte energética tanto do transporte individual quanto coletivo. Nesse contexto, uma variedade de outras tecnologias, ou mais provavelmente uma combinação delas, pode se candidatar a substituir os combustíveis fósseis. Na verdade, o uso limitado e combinado de agrocombustíveis, biomassa, hidrogênio, veículos elétricos, etc., junto à coletivização e racionalização do transporte pode levar a cortes gigantescos nas emissões.
Nas cidades, uma fração não desprezível de emissões, particularmente se a fonte de geração for fóssil (isto é, via termelétricas a carvão, petróleo ou gás), está associada ao uso de energia elétrica. É preciso atentar para o fato de que quantidades perdulárias de energia são gastas para iluminação e ambientação (no caso brasileiro e, obviamente, de Fortaleza, resfriamento), quando soluções arquitetônicas permitiriam o uso de luz e ventilação naturais, levando à redução do consumo de energia elétrica, o que seria um óbvio co-benefício. Na verdade, em geral, muitas emissões poderiam ser evitadas com base num uso racional e eficiente de energia elétrica desde residências a prédios comerciais. Este pode perfeitamente ser ampliado através de políticas de incentivo, junto com sansões ao perdularismo energético.
Ainda no que diz respeito à questão energética, apostando-se na possibilidade de que os custos se reduzam com a produção em escala, um caminho viável pode ser o de que as cidades mesmas gerem parte expressiva da energia que consomem, através de painéis solares e aerogeradores de pequeno porte sobre os tetos de construções de diversas naturezas.
Enchente em marginal na cidade de São Paulo
Outro aspecto não menos importante é o das áreas verdes e corpos d’água no interior das cidades. Ambos têm propriedades interessantes para a mitigação do efeito de microescala da “ilha urbana de calor” (isto é, o aquecimento maior da cidade em relação às vizinhanças), além de se constituírem em pequenos estoques de carbono. Uma política de defesa da manutenção, preservação e ampliação dessas áreas traz uma série de co-benefícios com implicações diretas na qualidade de vida da população habitante de assentamentos urbanos.
O segundo aspecto diz respeito aos impactos, e estes se manifestam de diversas formas, sendo as mais diretas migrações, saúde, conforto térmico, poluição, eventos extremos, além de outras indiretas indo da segurança alimentar à geração de energias por fontes renováveis, sensíveis à mudança climática (com destaque para a hidroeletricidade que depende dos estoques hídricos nos reservatórios que, por sua vez, são função da vazão afluente – isto é, da água que chega - e, portanto, em última instância, das chuvas).
Como frisado de início, a migração populacional é uma possível consequência de mudanças climáticas no campo e na zona costeira. Sabe-se que a elevação na temperatura e mudanças nos padrões de precipitação e evapotranspiração podem levar à inviabilização de culturas tradicionais (o milho, no semiárido nordestino, por exemplo, é possivelmente uma cultura a merecer atenção nesse sentido), tornando crítico o sustento de populações no campo. Ainda que projeções possam apontar até para um aumento da precipitação sobre o Nordeste Brasileiro (há na verdade grande espalhamento e, portanto, forte incerteza, nessas projeções), não há garantias de melhores condições para a agricultura tradicional, dado que esta depende não só do total médio de chuvas, mas de sua distribuição no espaço e no tempo (esta pode se concentrar em poucos eventos severos), da variabilidade interanual (alternância de anos secos e chuvosos), da evapotranspiração, que é função de outras variáveis climáticas, etc.
Ao mesmo tempo, a elevação do nível dos oceanos e sua acidificação podem trazer consequências gravíssimas sobre atividades como a pesca artesanal, a coleta de moluscos e crustáceos, etc. Para se ter uma ideia, dois dos principais suportes ao ecossistema marinho, no caso os recifes de coral e os manguezais – que juntos funcionam como uma espécie de rede de restaurantes, motéis e berçários – estão entre os mais criticamente atingidos pelas alterações de grande escala nos oceanos. A produção do exoesqueleto pelos corais é fortemente comprometida em águas mais ácidas (resultado da dissolução de CO2) e o manguezal é empurrado para dentro do continente pela alteração na salinidade e pela própria elevação do nível do mar eventualmente deparando-se, além da dificuldade natural de migração de um ecossistema inteiro em curtas escalas de tempo, com a própria ocupação humana. Em nosso caso, é preciso estar atento para os impactos sobre os habitantes do semiárido e das cidades do interior, além dos moradores da zona costeira, particularmente os que dependem da pesca. Um aumento da pressão migratória sobre a região metropolitana de Fortaleza pode surgir como consequência inexorável da eventual inviabilização da manutenção do modo de vida tradicional dessas comunidades. A elevação do nível dos oceanos também pressionará os habitantes da orla marítima em cidades litorâneas como Fortaleza.
Cena de desabamento em Nova Friburgo, RJ
Como bem coloca o quarto relatório do IPCC, os impactos das mudanças climáticas sobre a saúde humana são complexos, pois envolvem aspectos que vão do estresse térmico à proliferação de vetores de doenças como dengue e leishmaniose, ao aparecimento de condições propícias para a difusão de doenças possivelmente influenciadas por alterações no ciclo hidrológico, como o cólera.
Por fim, mas longe de menos importante, é preciso mencionar a questão dos eventos extremos. Uma atmosfera mais aquecida é capaz de armazenar mais vapor d’água o que, além de amplificar o efeito estufa, deixa mais matéria prima disponível para a formação de grandes tempestades. O uso de modelos de resolução mais fina nas projeções climáticas, além da análise de observações do final do século XX e início do século XXI corroboram com a idéia de que um planeta mais aquecido também será um planeta com mais tempestades severas. Inundações, alagamentos, deslizamentos deverão ser mais frequentes, atingindo em cheio as populações vulneráveis dos centros urbanos. Novamente, a face cruel da contradição entre o fato de os benefícios do desenvolvimento movido a combustíveis fósseis serem apropriados por uns - uma minoria – e os impactos, sofridos por outros – uma maioria.
É sob essa ótica, portanto, de mitigação das emissões locais, de luta pela redução das emissões globais e de uma política de adaptação com ênfase na proteção aos de baixo, que devemos pensar a política das cidades para o clima. O princípio-base é a justiça climática, isto é, quem se beneficiou das emissões, que arque com os custos da mitigação e adaptação; quem é mais vulnerável e foi excluído desse processo que receba proteção prioritária ante os impactos. Daí, que se possa desdobrar esse princípio em propostas de políticas públicas.

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