sábado, 24 de novembro de 2012

Em Defesa da Ciência do Clima




Tenho me preocupado muito com os ataques feitos recentemente à Ciência do Clima, dentre outros motivos, porque estes tem se constituído num amálgama estranho que reúne o Tea Party, a indústria petroquímica e pessoas que parecem acreditar numa grande conspiração imperialista para, ao impedir que queimem suas reservas de combustíveis fósseis, a periferia do capitalismo se “desenvolva”, o que, com o perdão da palavra, já é per si uma visão absolutamente tacanha de “desenvolvimento”.

Mas essa não é uma questão ideológica, mesmo porque se o fosse estaria eu distante de Al Gore. É uma questão científica, pois moléculas de CO2 não têm ideologia. O que elas são dotadas, assim como outras moléculas (caso do CH4 e do próprio vapor d’água), é de uma propriedade da qual não gozam os gases majoritários em nossa atmosfera, que é a de um modo de oscilação cuja frequência coincide com a de uma região do espectro eletromagnético conhecida como infravermelho.  A retenção do calor é uma consequência da presença desses gases (mesmo tão minoritários) na atmosfera terrestre. Não fosse por eles, a Terra teria temperatura média de -18 graus, em contraste com os moderados 15, para não falar do papel dos mesmos em mantê-la entre limites amenos. A Terra não é Mercúrio que, por não ter atmosfera, devolve livremente a energia absorvida do Sol na porção em que é dia, levando-o a contrastes de temperatura de 430 graus durante o dia e -160 graus à noite. Felizmente, tampouco é Vênus, cuja cobertura de nuvens faz com que chegue à sua superfície menos energia solar do que na Terra, mas cujo efeito estufa, causado por sua atmosfera composta quase que exclusivamente por CO2, eleva sua temperatura a praticamente constantes 480 graus.

Desconhecer essas idéias científicas simples, de que o CO2 é um gás de efeito estufa (conhecido e medido por Tyndall, Arrhenius e outros, desde o século XIX), com mecanismo bem explicado pela Física de sua estrutura molecular; ignorar o conhecido efeito global que o CO2 tem sobre um planeta vizinho, o que é bem estabelecido pela astronomia desde o saudoso Sagan, não faz sentido, especialmente no meio acadêmico, onde encontram-se alguns dos negadores mais falantes. A esses eu gostaria de lembrar de algo básico no método científico. De um lado, a ciência não tem dogma, nem verdades definitivas. Suas verdades são sempre, por construção, parciais e provisórias (que bom, senão viraria algo chato e tedioso como, digamos, uma religião). No entanto, por outro lado, o conhecimento científico é cumulativo e, nesse sentido, não se pode andar para trás! Só quando uma teoria falha, se justifica uma nova e esta não pode ser apenas a negação da anterior, pois precisa ser capaz de reproduzir todos os seus méritos (caso da Mecânica Clássica e da Relatividade, que se reduz à primeira para baixas velocidades).

Não é uma questão de crença. “Monotonia” à parte, é ciência bem estabelecida, bem conhecida. Tanto quanto a Gravitação Universal (que também é “apenas” uma teoria) ou a Evolução das Espécies.

INJUSTIÇA, DESRESPEITO E SUBESTIMAÇÃO

Os Cientistas do Clima tem sofrido ataques, com base em factóides que em nenhum momento se assemelham à realidade de nossa área. Nenhuma Ciência é hoje tão pública e aberta.  Quem quiser, pode obter facilmente, na maioria dos casos diretamente pela internet, dados observados do clima, que demonstram claramente o aquecimento global (www.cru.uea.ac.uk/cru/data/ dentre outros), dados de modelagem que estão sendo gerados agora e que certamente subsidiarão o 5o relatório do IPCC (http://cmip-pcmdi.llnl.gov/cmip5/data_portal.html) ou dados de testemunhos paleoclimáticos, que servem para analisar o clima do passado (www.ncdc.noaa.gov). Pode obter os relatórios do IPCC, em http://www.ipcc.ch e seguir as referências, revisadas e publicadas em sua esmagadora maioria, principalmente no caso do Grupo de Trabalho que lida com as Bases Físicas do Sistema Climático, em revistas de grande impacto, sejam gerais (Science, Nature), sejam da área. Duvido que, em nossas universidades, cheias de laboratórios com convênios privados, sejam na engenharia de materiais ou na bioquímica, haja um segmento tão aberto, que tenha o desprendimento de sentar à mesa, compartilhar dados, levantar o estado-da-arte em sua ciência e elaborar coletivamente um relatório de síntese. Duvido! Desafio!

Os cientistas que participamos desses painéis não somos “representantes de governos”. Nada é criado ou inventado nesses painéis, além de uma síntese da Ciência que é produzida de maneira independente e publicada na literatura revisada por pares. Os que participam da comunidade acadêmica podem, inclusive, se informar melhor com facilidade, junto a colegas da comunidade científica brasileira que participaram e participam das iniciativas do IPCC e do PBMC sobre o funcionamento desses painéis, antes de emitir opinião, para que não terminem, na prática, difamando o que desconhecem. Algumas pessoas, sem a menor conduta crítica em relação aos detratores do IPCC, repetem-lhes a verborragia, quando poderiam ser céticos em relação aos “céticos”.

Mas não o são. Em nenhum momento, questionam as reais motivações de dois ou três (felizmente, são tão raros) que assumem a conduta lamentável da negação anti-ciência, ou por serem abertamente corruptos e serviçais da indústria petroquímica ou, simplesmente, por terem uma vaidade que não cabe no papel secundário que cumpririam caso estivessem, como nós, desprendendo, em geral quase anonimamente, enorme energia para colocar tijolo por tijolo no edifício da Ciência do Clima. É preciso saber distinguir entre o ceticismo honesto, genuíno, que é saudável em ciência, consonante com a dúvida sincera e a conduta crítica, da negação religiosa, baseada em fé e na necessidade cega de defender determinado ponto de vista, independente se o mesmo tem base real ou não e, principalmente, da canalhice pura e simples, que é o que é promovido por alguns dos negadores. O possível “sucesso” dessas idéias junto ao público, para mim, são terreno da psicologia social, mas a melhor analogia que tenho é a da popularidade de idéias religiosas, em geral mentiras reconfortantes que são preferidas em detrimento de verdades desagradáveis.

O verdadeiro ceticismo levou até onde os físicos de Berkeley foram (http://www.berkeleyearth.org/index.php).  Inicialmente questionando os resultados obtidos por nossa comunidade, se municiaram de um enorme banco de dados de temperatura em escala mundial, mais amplo do que os que o Hadley Centre inglês e a NASA dispunham. Testaram outras metodologias, chegaram até a excluir as estações meteorológicas usadas por nossos centros de pesquisa. A postura inicial de Richard Muller, idealizador dessa iniciativa, era de tamanho questionamento em relação a nossos resultados que ele chegou a alavancar recursos da famigerada Fundação Koch, abertamente anti-Ciência do Clima. Mas o que Muller e seus parceiros encontraram? O mesmo resultado que já nos era conhecido. A Terra está aquecendo e este aquecimento se acelerou bastante nas últimas décadas do século XX. Este aquecimento se aproxima de um grau e portanto está muito acima de todas as flutuações naturais registradas desde que se tem registro instrumental. Aliás, confirmou o que também sabíamos: que os dados da Universidade de East Anglia (aqueles mesmos da farsa montada sob o nome altissonante de “climategate”, aqueles que foram perseguidos e cuja reputação foi ignominiosamente atacada, com repercussões em suas carreiras profissionais e vidas pessoais) contém um erro... para menos! O aquecimento sugerido pelos dados da CRU/UEA é um décimo de grau inferior aos das outras fontes de dados e, claro, entre nós, ninguém os acusa de desonestos por isso.

Outra impostura – e infelizmente, apesar da dureza do termo, acho que é neste caso em que ele se aplica – é a subestimação da inteligência de nossa comunidade, aliada ao desconhecimento dos materiais por ela produzidos. O 4o relatório do IPCC já contém um capítulo exclusivamente sobre Paleoclimatologia, isto é, sobre o clima do passado. Eu pessoalmente tenho dedicado grandes esforços na análise de testemunhos do clima passado e na modelagem das condições climáticas passadas. Existe uma preocupação permanente em discernir o sinal natural e separar, dele, o sinal antrópico, desde o primeiro relatório do IPCC. Para isso, avalia-se o papel das variações de atividade solar, as emissões dos vulcões, etc. Já avaliamos as possíveis influências naturais e as descartamos como possível causa para o aquecimento observado.

Nesse sentido, não há lugar para sofismas e tergiversações. Sobre os registros paleoclimáticos, que são capazes de recontar o histórico de temperatura e de concentração de gases de efeito estufa de 800 mil anos atrás até o presente, todos sabemos que, no passado, um pequeno aquecimento do planeta precedeu o aumento da concentração dos gases de efeito estufa. Isso se deu antes do encerramento de todas as eras glaciais. Mas é um raciocínio obtuso deduzir daí que o CO2 não exerce nenhum papel ou, nas palavras dos negadores “é consequência e não causa”.  Existem diversos processos de retroalimentação no sistema climático e este é um dos melhores exemplos. As sutis variações da insolação e da distribuição desta sobre a superfície da Terra associadas aos ciclos orbitais são – e isto é do conhecimento de todos – muito pequenas para explicar as grandes diferenças de temperatura entre os períodos glaciais (“eras do gelo”) e os interglaciais (períodos quentes, mais breves, que as intercalaram). Mas um aquecimento sutil, após alguns séculos, mostrou-se suficiente para elevar a emissões naturais de CO2 e metano, que causam efeito estufa e amplificam o processo. Essa retroalimentação só era refreada, em condições livres da ação do homem, quando as condições orbitais mudavam novamente, levando a um resfriamento sutil, que induzia a captura de CO2 no sistema terrestre, que por sua vez amplificava o resfriamento e assim por diante.

Mas não é porque pessoas morrem de câncer e infarto que não se possa atribuir responsabilidades a um assassino! Porque pessoas morrem naturalmente de derrame,  alguém acha possível dizer que “é impossível que um tiro mate alguém”? Ou que não se deva julgar mais ninguém por assassinato? Antes, era preciso um pequeno aquecimento para deflagrar emissões naturais e aumento de concentração de CO2, para daí o aquecimento se acelerar. Hoje, há uma fonte independente de CO2, estranha aos ciclos naturais e esta é a queima de combustíveis fósseis! Devo, aliás, frisar que até a análise isotópica (a composição é diferente entre combustíveis fósseis e outras fontes) é clara: a origem do CO2 excedente na atmosfera terrestre é sim, em sua maioria, petróleo, carvão, gás natural! Um mínimo de verdadeiro aprofundamento científico deixa claro que, hoje, o aumento das concentrações de CO2 na atmosfera é eminentemente antrópico e que é isso que vem acarretando as mudanças climáticas observadas. Não é possível mais tapar o sol, ou melhor, tapar os gases de efeito estufa com uma peneira! Os registros paleoclimáticos mostram que o aquecimento atual é inédito nos últimos 2500 anos. Mostram que a concentração atual de CO2 está 110 ppm acima do observado antes da era industrial e quase 100 ppm acima do que se viu nos últimos 800 mil anos. Mostram que esse número é maior do que a diferença entre a concentração de CO2 existente nos interglaciais e nas “eras do gelo” e que isso faz, sim, grande diferença sobre o clima.

QUAIS OS VERDADEIROS ERROS

Algumas pessoas se dizem céticas, críticas e desconfiadas em relação à maioria de nossa comunidade de cientistas do clima, mas não percebem o erro fundamental que cometem: a absoluta falta de ceticismo, criticidade e desconfiança em relação aos que nos detratam. A postura dos que combatem a Ciência do Clima sob financiamento da indústria petroquímica, ou em associação com setores partidários e da mídia mais reacionários é auto-explicativa. Interessa o acobertamento da realidade. Mas não só. Há desde essas pessoas que recebem diretamente recursos da indústria do petróleo a falastrões que há muito não têm atuação científica de verdade na área e, sem serem capazes de permanecer em evidência trabalhando seriamente para contribuir com o avançar de nossa ciência, debruçando-se sobre as verdadeiras incertezas, contribuindo para coletar dados, melhorar métodos e modelos, etc., apenas para manterem holofotes sobre si, têm atacado o restante da comunidade. Estranho e espalhafatoso como as penas de pavão. Prosaico como os mecanismos evolutivos que levaram tais penas a surgirem. Daí é preciso também combater o ponto de vista daqueles que dão a esse ataque um falso verniz “de esquerda”, pois lançam mão de teorias de conspiração, uma deturpação patológica do raciocínio crítico. Lutar com o alvo errado, com a arma errada, é pior do que desarmar para a luta.

O IPCC é perfeito? Não, é claro. Cometeu erros. Mas querem saber, de fato, quais são? Uma coisa precisa ficar claro a todos. As avaliações do IPCC tendem a ser conservadoras.  As projeções de temperatura realizadas para após o ano 2000 estão essencialmente acertadas, mas sabe o que acontece com as projeções de elevação do nível dos oceanos e de degelo no Ártico? Estão subestimadas. Isso mesmo. O cenário verdadeiro é mais grave do que o 4o relatório do IPCC aponta. Mas de novo não é por uma questão política, mas pela limitação, na época, dos modelos de criosfera, incapazes de levar em conta processos importantes que levam ao degelo. Provavelmente, baseando-se em artigos que vêm sendo publicados nesse meio tempo, o 5o relatório será capaz de corrigir essas limitações e mostrar um quadro mais próximo da real gravidade do problema em 2013-2014 quando de sua publicação.

QUAL A VERDADEIRA QUESTÃO IDEOLÓGICA?

Não faz sentido “acreditar” ou não na gravidade, na evolução ou no efeito estufa. Não se trata de uma “opção ideológica” (apesar de haver, nos EUA, uma forte correlação entre ideologia e ciência junto ao eleitorado republicano mais reacionário, que dá ouvidos aos detratores da ciência do clima e que também querem ver Darwin fora das escolas).

A verdadeira questão ideológica, é que as mudanças climáticas são um processo de extrema desigualdade, da raiz, aos seus impactos. Quem mais se beneficiou das emissões dos gases de efeito estufa foram e continuam sendo as classes dominantes dos países capitalistas centrais. Juntamente com os mega-aglomerados do capital financeiro, a indústria petroquímica, o setor de mineração (que inclui mineração de carvão), o setor energético, etc. concentraram riquezas usando a atmosfera como sua grande lata de lixo. Mais do que a “pegada” de carbono atual (que é ainda extremamente desigual se compararmos americanos, europeus e australianos, de um lado, com africanos do outro), é mais díspar ainda a “pegada histórica” (isto é, o já emitido, o acumulado a partir das emissões de cada país), que faz da Europa e, em seguida, dos EUA, grandes emissores históricos.

Cruelmente, em contrapartida, os impactos das mudanças no clima recairão sobre os países mais pobres, sobre as pequenas nações, principalmente sobre os pobres dos países pobres, sobre os mais vulneráveis. Perda de territórios em países insulares, questões  de segurança hídrica e alimentar em regiões semi-áridas (tão vastas no berço de nossa espécie, que é o continente africano), efeitos de eventos severos (que, com base física muito clara, devem se tornar mais frequentes num planeta aquecido), comprometimento de ecossistemas marinhos costeiros e florestas, atingindo pesca e atividades de coleta; inviabilização de culturas agrícolas tradicionais... tudo isso recai onde? Sobre o andar de baixo! O de cima fala em “adaptação” e tem muito mais instrumentos para se adaptar às mudanças. A nós, neste caso, interessa sermos conservadores quanto ao clima e frear esse “experimento” desastrado, desordenado, de alteração da composição química da atmosfera terrestre e do balanço energético planetário! Para a maioria dos 7 bilhões de habitantes dessa esfera, a estabilidade climática é importante!

Alguns dos mais ricos, na verdade, veem o aquecimento global como “oportunidade”... Claro, “oportunidade” de expandir o agronegócio para as futuras terras agricultáveis do norte do Canadá e da Sibéria e para explorar petróleo no oceano que se abrirá com o crescente degelo do Ártico.

Assim, é preciso perceber que há uma verdadeira impostura vagando por aí e a Ciência precisa ser defendida. Uma rocha é uma rocha; uma árvore é uma árvore; uma molécula de CO2 é uma molécula de CO2, independente de ideologia. Mas os de baixo só serão/seremos capazes de se/nos armarem/armarmos para transformar a sociedade se estiverem/estivermos bem informados e aí, é preciso combater os absurdos proferidos pelos detratores da Ciência do Clima.

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