Neste texto, quero expor um dos perigos em relação à ofensiva dos negadores das mudanças climáticas. Não se trata da aceitação acrítica dos seus pontos de vista, pois realmente duvido que tomadores de decisão das esferas governamentais, setores da academia de outras áreas e a sociedade em geral tendam, majoritariamente, a deixarem o discurso anti-cientítico ou pseudo-científico se espalhar sem questionamento.
O efeito colateral realmente perigoso da ofensiva dos negadores é contaminar o senso comum, que tende à moderação, induzindo-o a opinião falsamente ponderada. Em outras palavras, se os negadores conseguirem deixar a impressão de que existe um "debate" sobre as mudanças climáticas; que há dois grupos "radicais" cujas opiniões não refletem a realidade que estaria "em algum lugar no meio"; que o saldo na opinião pública seja algo como "ok, o problema existe, mas não é tão grande assim", especialmente tendo eles recebido atenção da mídia e do público, terão conseguido seu verdadeiro intento.
Alguém acredita que possa haver uma "verdade intermediária" entre a evolução e o criacionismo? Que possa haver uma "opinião ponderada" existente entre a condenação ao nazismo e a negação do holocausto?
Alguém acredita que a bancada ruralista achava mesmo que o Código Florestal passaria do jeito que saiu da Câmara de Deputados, com tantos absurdos? No fundo essa era uma tática interessante para eles ganharem terreno, pois sabiam que Dilma dificilmente vetaria o texto todo.
Alguém acredita que a bancada ruralista achava mesmo que o Código Florestal passaria do jeito que saiu da Câmara de Deputados, com tantos absurdos? No fundo essa era uma tática interessante para eles ganharem terreno, pois sabiam que Dilma dificilmente vetaria o texto todo.
Como na questão climática, a discussão do Código Florestal seguiu uma receita. Mexer nas florestas, com a população tendo adquirido mais consciência da importância de conservá-las, pode ser difícil. Um novo Código Florestal, que permitisse desmatamento, seria exatamente como um bode na sala. Fedendo, incomodando, ocupando a poltrona da visita. Mas há os que desejam que o bode fique e a única maneira de conseguir isso é naturalizar a condição do bode, ou seja, fazer com que a presença do bode pareça normal e inofensiva. Daí, se o objetivo é deixar o bode por lá, adota-se uma manobra diversionista: infesta-se a sala com duzentos gambás! Fedem mais, incomodam muito mais (poderiam ser elefantes, claro, coerente com a infame musiquinha)! Para se tirar o monte de gambás da sala, gasta-se muita energia. Uma sala livre de gambás passa a parecer um paraíso. Alguns que não queriam o bode, passam a achar que este nem fede tanto assim. Um outro chega até a dizer que um bode e cinquenta gambás é "um ponto de vista equilibrado". Ao final, os gambás (e os elefantes) saem e o bode fica. Aceitá-lo parece ser uma "opinião ponderada" ou até "avançada", comparada à daqueles que insistiam "nem um gambazinho?".
Daí, na questão climática, a assimilação de parte do discurso surrealisticamente mentiroso dos negadores por parcelas mais amplas da população, dos tomadores de decisão, por pessoas inteligentes e de bom senso, ligadas ou não à academia e ao poder público é o que há de pior em termos de efeito colateral! E enquanto os gambás e elefantes surrealistas dão trabalho para sairem de cena, o bode climático teima em ficar na sala. Infelizmente, já há vários exemplos que pessoas sensatas, críticas, céticas (no sentido correto e positivo da palavra), intelectualmente honestas, possam estar caindo nessa armadilha.
Questionar os desvarios de Ricardo Felício, como fizeram por exemplo http://www.youtube.com/watch?v=z2RnK_ZTmdQ e http://www.youtube.com/watch?v=IQmQcyt-TE0&feature=related é, a priori, algo positivo. Revela um traço de ceticismo e espírito crítico bastante saudáveis. Foram pessoas que buscaram outros pontos de vista, sem se contentarem com a exposição de argumentos desprovida de lógica formal e abertamente anti-científica (encoberta apenas com um manto fino de autoridade de "professor da USP").
Mas ainda assim, muito em função da dificuldade, por não serem especialistas, em lidar com o conjunto de informações ou buscá-las com orientação e aprofundamento, cometem erros sérios. Em um momento oportuno (continuidade deste texto), abordarei os principais equívocos nestes dois vídeos (como o simpático Pirulla ter caído no factóide de que Michael Mann falsificou dados ou na condescendência que ambos têm para com Molion, que não é tão flagrantemente anti-ciência quanto Ricardo).
Por enquanto, vou me ater a um outro exemplo. Navegando no site do Deputado Ivan Valente - devo dizer, lutador de extrema coerência das causas ambientais - encontrei um texto que reflete o perigo da ofensiva negadora:http://www.ivanvalente.com.br/blog/2012/05/clima-global-meio-ambiente-e-justica-social/. Este texto, ao meu ver, pretende expor uma posição "ponderada", mas que, na minha visão de especialista, contém importantes equívocos, especialmente ao subestimar a crise climática. Sequer sei se o Deputado e sua assessoria partilham integralmente do ponto de vista desse texto, mas não deixa de ser preocupante, tendo sido o Ivan Valente um dos que perceberam e denunciaram a tática caprina na questão do Código Florestal (http://www.ivanvalente.com.br/blog/2012/05/vetos-de-dilma-ao-codigo-florestal-mantem-anistia-e-sao-insuficientes-para-barrar-novos-desmatamentos/), parecer ser incapaz de perceber a presença do bode climático.
O texto citado (de Américo Kerr – Le Monde Diplomatique Brasil), evidentemente, não é nem de perto nocivo como a propaganda negadora das mudanças climáticas, ora explicitamente veiculada pela extrema direita, ora pintada com vernil falsamente de "esquerda", mas num caso e no outro com construções argumentativas distantes da realidade objetiva e calcadas em teorias de conspiração. Mas ao enfatizar as atribuições de "muito provável" ou "provável" como ainda contendo algum grau de incerteza, o texto esquece que em ciência nunca se pode provar integralmente uma determinada hipótese. Apenas se pode refutá-la. Daí, certeza absoluta é metodologicamente incompatível com o método científico, que inclui sempre barras de erros em cada observação e em cada estudo de modelagem. E ao mesmo tempo, esquece as afirmações claras no sentido de que o aquecimento do sistema climático é inequívoco e que o papel antrópico é muito provavelmente a causa, já que todas as outras apresentadas até agora têm sido sistematicamente refutadas ou consideradas, pelo menos, extremamente improváveis.
Nesse sentido, o texto se equivoca enormemente em vários aspectos fulcrais e bem conhecidos entre nós, especialistas da área, da ciência do clima, revelando, o que espero ser desinformação e não má fé:
1. No que diz respeito a considerar o CO2 um gás de importância menor em relação ao vapor d'água, isso esconde uma diferença importante entre os dois. O CO2 é virtualmente inerte e pode ser considerado (como metano, óxido nitroso e halocarbonetos) um "gás de efeito estufa de vida longa" (GEEVL), apenas fracamente controlado por mecanismos internos ao sistema climático (como o ciclo do carbono), em comparação com a reciclagem sofrida pelo vapor d'água. Daí, ignora um fato importante que é o papel do vapor d'água em amplificar o efeito do CO2. Já que a presença da água em forma de vapor é limitada pelos processos de mudança de fase (formação de água líquida e/ou gelo dando origem às nuvens e à precipitação), uma atmosfera mais quente, pela bem conhecida equação de Clausius-Clapeyron, consegue reter mais vapor. Como este exerce efeito estufa, o aquecimento introduzido pelo CO2 é amplificado através do mecanismo de retroalimentação positiva (no sentido de que é auto-amplificado) conhecido como "feedback do vapor d'água". Observações do sistema terrestre já mostram que a quantidade de vapor d'água na atmosfera terrestre cresceu 4% nas últimas décadas, certamente contribuindo já de maneira discernível para amplificar o efeito do CO2 e demais GEEVLs;
2. Há um erro profundo na quantificação do efeito radiativo dos ciclos solares. O texto apresenta-o como sendo de 1,3 W/m2 (0,1% da constante solar), o que pareceria comparável aos 1,7 W/m2 de forçante radiativa do CO2 (correspondente apenas ao excedente humano, isto é, aos mais de 100 ppm acumulados do periodo pre-industrial até hoje). Nada mais falho. Esse valor é que corresponde ao efeito, no topo da atmosfera, num ponto diretamente voltado para o Sol. Para se calcular a verdadeira influência do ciclo solar, é preciso dividir esse valor por 4, pois essa energia é recebida pela Terra por um "disco" com mesmo raio do planeta (área igual a pi vezes raio ao quadrado), mas tem de ser distribuído por toda a esfera (cuja área é 4 vezes pi vezes o raio ao quadrado)! Em seguida, desse valor devem ser descontados 30% (albedo planetário), que são refletidos diretamente para o espaço, sem entrarem no balanço energético do planeta. Pouco mais de 0,2 W/m2 é, portanto, uma estimativa muito mais fidedigna, sendo por si só várias vezes menos do que o efeito do CO2 acumulado no período industrial. Mas este erro fica mais evidente ao considerarmos que esses 0,2 W/m2 alternam valores para mais e para menos em ciclos de 11 anos. Ou seja, em médias de longo prazo seu efeito qual é? Nenhum! Para ser completo nesta análise, estimativas de atividade solar nos últimos dois milênios mostram outras variações além desse ciclo rápido, das manchas, mas também mostram que diferenças entre quaisquer momentos nesse período todo são sempre de apenas alguns décimos de W/m2, muito inferiores, portanto, à contribuição antrópica na forçante radiativa global associada aos GEELVs''
3. As variações de temperatura de 10 graus advindas, segundo o autor, de registros paleoclimáticos, novamente refletem conhecimento limitado sobre o tema. Escolhe-se um ponto, aplica-se uma generalização falsa e chega-se à sugestão de que "não há muito com o que se preocupar". Tratam-se de variações grandes, mas regionais, na Groenlândia e outras porções do Ártico, que são sensíveis a mudanças na calota polar. A temperatura média global na última era do gelo, por exemplo, se situa, conforme as melhores estimativas, entre 3 e 5 graus abaixo do que se verifica hoje, com uma forçante radiativa de -8 W/m2 (considerando efeitos do albedo aumentado de gelo mais extenso e mais continentes expostos, mais aerossóis de poeira e mudanças de vegetação e considerando a redução dos gases de efeito estufa por efeitos naturais de sequestro de carbono por biota marinha e permafrost). +8.5 W/m2 (sugerindo 3 a 5 graus mais quente na média global) é a forçante radiativa do cenário pessimista ("business as usual") nas simulações que subsidiarão as discussões do 5o relatório do IPCC, previsto para 2013-2014.
Estes e outros erros menores compõem um texto que leva a conclusões falsas como as premissas. Assim como o autor, não sou adepto de soluções mirabolantes de geoengenharia, nem de uso massivo de agrocombustíveis. Defendo um freio no consumo e um basta ao desvario exponencial do capital. Mas o mais importante que é preciso se dizer sobre a questão climática é que já existe uma opinião ponderada: a do IPCC! Vou além: o IPCC é extremamente conservador e cauteloso em suas afirmações, na medida em que ele reflete o consenso da comunidade científica (no sentido de uma posição média e mediada). Nenhuma de suas afirmações é "catastrofista" ou "alarmista", até porque as suas projeções ou tem-se confirmado (no caso da temperatura global) ou têm ficado abaixo do ritmo observado de mudanças (casos do degelo e da elevação do nível médio dos oceanos).
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