domingo, 13 de janeiro de 2013

Paleoclima II - Os detetives do clima e as pistas do passado



Os estudos de Paleoclimatologia são incríveis trabalhos de detetive. Voltando de certo modo à analogia criminalista que usei no texto anterior sobre Paleoclima, é uma busca de identificar o equivalente a pegadas, impressões digitais, fios de cabelo e outras evidências deixadas para traz pelo clima do passado. Essas evidências são gravadas na forma de  uma série de parâmetros físicos e químicos em sistemas diversos, como veremos em seguida. 

Isótopos do Oxigênio
A datação desses processos, isto é, determinar há quanto tempo atrás eles ocorreram é uma questão à parte, mas assim como os próprios marcadores paleoclimáticos, envolve, não raro, os chamados isótopos, isto é, átomos de um mesmo elemento químico com massas diferentes, sejam eles estáveis ou instáveis (radioativos). No nosso caso, são particularmente importantes os isótopos do Hidrogênio (o elemento mais simples, que só possui um próton): 1H (o hidrogênio "comum"), 2H (ou Deutério, simbolizado por D, o primo pesado) e 3H (ou Trício. que é instável); do Carbono: 12C (o mais abundante), 13C (também estável) e 14C (que é radioativo e importante para datação de objetos relativamente recentes); e do Oxigênio, que aparece em três formas estáveis na natureza: 16O (o mais leve e abundante), 17O (estável, mas pouco abundante) e 18O (também estável, mais pesado e mais relevante para os estudos paleoclimáticos). Também são importantes outras relações entre isótopos estáveis de elementos que participam de ciclos biogeoquímicos e entre elementos radioativos que permitem estabelecer datas mais remotas (é o caso do Urânio e Tório).

Anéis de crescimento de árvores.
Fonte: http://www.sobiologia.com.br/
Uma das fontes interessantes de informações paleoclimáticas são troncos de árvores, cuja idade pode ser determinada com boa precisão e que apresentam os chamados anéis de crescimento. Particularmente em latitudes mais altas do que aquelas de onde escrevo, durante o inverno frio as árvores perdem as folhas e entram num estado "de dormência", mas a cada verão realizam fotossíntese e crescem. Nas regiões temperadas, como a Europa, verões mais quentes geralmente estão associados a uma maior atividade fotossintética e os anéis de crescimento são mais largos. Em anos mais frios, acontece o inverso, como mostrado na figura ao lado.

Médias móveis (20 anos) das espessuras e densidades
de anéis de árvores (média de vários sítios de observação),
comparada com temperaturas observadas de Agosto a Setembro.






Se analisarmos o gráfico ao lado, originalmente publicado em Briffa (1998), desde 1880, quando se iniciou o registro globalmente sistemático de temperatura, até a década de 1960, o crescimento das árvores e esta variável guardam forte correlação entre si. Apenas mais recentemente, quando a influência do homem não somente sobre as temperaturas globais, mas sobre o ambiente como um todo, incluindo formação de chuva ácida na Europa e uma série de outros processos que podem influenciar na fisiologia vegetal, as duas curvas divergem. Graças à concordância entre temperatura e crescimento, árvores podem ser consideradas um bom "paleotermômetro", isto é uma fonte de estimativas de temperatura no passado, especialmente na escala de séculos atrás.

Mas da mesma forma que uma boa investigação criminal não se baseia em uma única evidência, mas na maior quantidade de evidências possíveis, os anéis de árvores estão longe de ser a única fonte de evidência paleoclimática. Uma das fontes mais interessantes de informação sobre o clima do passado são os chamados "ice cores" ou colunas de gelo.

Removidos por meio de uma broca oca, como na figura, "ice cores" permitem obter dados sobre o clima até 800 mil anos atrás, como no caso das coletas do projeto EPICA, no sítio Dome CSão uma fonte de informação múltipla. 

A partir da proporção de 18O no gelo, é possível inferir se as temperaturas estavam mais frias ou mais quentes. Isso ocorre porque, quando o planeta está mais frio, moléculas de água contendo 18O têm mais dificuldade de evaporar, pois essas moléculas são mais pesadas do que as que contém 16O. Ora, o gelo da Antártica e da Groenlândia se formou a partir de neve que precipitou, e esta, a partir do vapor d'água fornecido pelos oceanos. Como resultado, a temperatura acompanha o 18O nos "ice cores": quanto mais 18O, mais quente estaca o planeta.

Pedaço de gelo, com bolhas
Quando o gelo se forma, a partir da neve mais velha, que vai sendo compactada pelo peso da neve mais nova que sobre ela caiu, ele termina aprisionando o ar que ficava entre os flocos. Isto termina se tornando uma fonte única para analisar a composição da atmosfera no passado! O ar antigo, aprisionado no gelo na forma de pequenas bolhas, quando é resgatado das profundezas pelos cientistas, tem toda uma história para contar! Fazendo uma análise química desse ar, podemos saber qual era a concentração dos gases de efeito estufa (CO2, CH4, N2O) no passado. Também é possível estimar a quantidade de poeira em suspensão na paleo-atmosfera (o que é um indicativo de períodos mais secos e/ou com mais terra exposta, indicando nível do mar mais baixo).

Cientistas coletam amostras de coral
no Atol Clipperton Atoll, 10°N, 109°W.
Foto de Maris Kazmers
Os oceanos também são uma fonte valiosa de informações. Quando organismos marinhos formam suas estruturas de calcário (CaCO3, na forma dos minerais aragonita e calcita), utilizam átomos de oxigênio que pertencem às moléculas de água do oceano. Portanto, suas conchas e exoesqueletos vão refletir a quantidade de 18O na água do mar. Assim, numa lógica inversa à dos "ice cores", a temperatura do planeta fica registrada nessas estruturas de calcário que, com a morte desses animais, sedimenta e passa a compor o piso oceânico. Como dissemos, quando o planeta está mais frio, as moléculas de água mais pesadas têm mais dificuldade de evaporar e, neste caso, o oceano passa a reter uma maior proporção de 18O, assim como as conchas e demais estruturas calcáreas dos organismos vivos. E tudo vai parar no fundo do mar, onde a informação fica guardada, camada após camada. Outro marcador paleoclimático importante são as alquenonas, um tipo de composto orgânico da classe das cetonas produzido por cocolitóferos. É uma molécula extremamente resistente, que pode ficar milhões de anos sem se decompor cujo número de ligações insaturadas é tanto maior quanto menor for a temperatura da água. A análise química das alquenonas, portanto, informa a temperatura próximo à superfície do mar onde esses pequenos organismos viveram. Além disso, há os corais, impressionantes seres vivos que possuem bandas de crescimento (como as árvores) que podem revelar importantes aspectos da temperatura e da salinidade do mar, no passado. Assim como no sedimento marinho, os corais também guardam a informação da quantidade de 18O na água do mar. Há também uma importante relação entre os parâmetros climáticos e as proporções observadas de Magnésio/Cálcio e Estrôncio/Cálcio. Como tanto o Magnésio quanto o Estrôncio são metais alcalino-terrosos como o Cálcio, podem ocupar o lugar deste último nos exoesqueletos dos corais. Quanto mais alta a temperatura, os átomos mais leves são mais favorecidos, ou seja, a presença de mais Magnésio e menos Estrôncio é indicador de um oceano mais quente.  

Espeleotemas, particularmente estalagmites, são outra possível pista do passado do clima. Quando uma estalagmite se forma em uma caverna, o calcáreo guarda a informação... de quem, de quem? Do bom e velho 18O na água que goteja a partir do teto! A proporção desse isótopo pode, por exemplo, informar a quantidade de precipitação naquela região. E novamente isso tem a ver com o fracionamento que ocorre quando a água evapora. Se há escassez de chuvas, a água que goteja a partir do teto da caverna (infiltrada a partir de cima) tende a conter mais 18O do que nos períodos de abundância de precipitação. E é isso que permite que as estalagmites funcionem como verdadeiros pluviômetros do passado.

Outras fontes interessantes de dados incluem a análise de pólen (afinal, a vegetação acompanha o clima e a predominância de espécies típicas de temperaturas maiores ou menores ou de regimes mais úmidos ou mais secos permite reconstruir esses aspectos), de sedimentos em lagos, análise de macrofauna, e até coisas bem inusitadas, como fezes de animais conservadas em determinados ambientes (pois indicam o que esses animais comiam e, portanto, informam o tipo de vegetação antes existente naquela localidade).


A Paleoclimatologia é uma das ciências que mais tem avançado recentemente. Esses diversos tipos de testemunhos paleoclimáticos são análogos, na ciência forense, aos sucessivos avanços que incluem detecção de vestígios de sangue, identificação de DNA, análises toxicológicas, etc. O estudo das mudanças climáticas do passado tem sido uma fonte inestimável de informação para compreendermos o clima do presente e percebermos que não há alternativa racional, lógica, científica, enfim, que não seja atribuir às atividades humanas a mudança no clima que observamos com nossos próprios olhos.

Sobre isso, aliás, devo lembrar que conclusões científicas dificilmente decorrem de somente uma linha de evidência. Na realidade, o que sabemos sobre o Clima da Terra hoje e sobre a influência antrópica é resultado de múltiplas linhas de evidências, incluindo diversas observações independentes, uma variedade de testemunhos do clima do passado e de dados produzidos por modelos climáticos. É fruto de uma sobreposição de resultados que apontam sempre no mesmo sentido

Como coloquei anteriormente, esta série terá continuidade em artigos posteriores, nos quais abordaremos a variabilidade climática em escala centenial/milenar e falaremos dos famosos "Período Medieval Quente" e "Pequena Era do Gelo", na chamada "escala orbital" (várias dezenas de milhares a centenas de milhares de anos) e, por fim, à escala de milhões de anos, sempre fazendo um paralelo entre as mudanças climáticas do passado e as mudanças de hoje.

5 comentários:

  1. Ótimo texto, muito informativo. Nunca soube como o 18O acabava sendo um indicador de clima...

    Uma pergunta: é muito raro eu encontrar proxies brasileiros nas reconstruções globais de paleoclima (exemplos abaixo). Imagino que o fato de não termos gelerias seja um motivo, mas é só isso? Há material para acadêmicos brasileiros pesquisarem e contribuírem para esses estudos? Imagino que seria um tipo de pesquisa que daria bastante visibilidade internacional a quem fiizesse, pois iria ser bastante citado...

    http://www.asr.ucar.edu/2004/CGD/ccr/morrill.gif
    http://www.ldeo.columbia.edu/res/div/ocp/drought/medieval.shtml

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bem colocado, Alexandre

      Há poucos testemunhos porque há poucas pessoas trabalhando nisso em nosso País, como meus amigos Francisco Cruz e Abdel Siffedine. De qualquer modo, o 1º Relatório do PBMC trará um capítulo de paleoclima.

      Estou, no momento, dando meus primeiros passos na modelagem de paleoclima e tentando interagir mais de perto com esses colegas.

      Excluir
    2. Testemunho é o equivalente português de proxy? Mais uma que aprendo...

      Excluir
    3. Testemunho = core
      Indicador = proxy

      Excluir
  2. Vamos divulgar o blog para nossos contatos pessoal, ainda tem poucos seguidores para o tamanho e importância do tema

    ResponderExcluir

Copo "meio cheio" não salva uma casa em chamas

Alok Sharma, presidente da COP26, teve de conter as lágrimas no anúncio do texto final da Conferência, com recuo em tópicos essenciais "...

Mais populares este mês