O debate climático pode ser acirrado, sim. Mas não é aquele que os negacionistas dizem existir, nem travado na forma que eles tentam fazer o público acreditar |
Como coloquei em postagem anterior, não existe debate sobre a existência ou não do aquecimento global, tampouco de suas causas (antrópicas), nem sequer da importância dos riscos a ele associados ou da urgência em lidar com o tema. Esse é o consenso da comunidade científica em função do peso das evidências.
Mas isto não quer dizer que não haja polêmicas ou debate em nosso meio. Pelo contrário, há ainda incertezas importantes sobre determinados aspectos da dinâmica do clima, envolvendo a magnitude de certos processos, questões de irreversibilidade, dimensão dos impactos e, claro, há diferenças entre nós sobre o que deve ser feito, ou seja sobre as soluções para a crise climática. Há desde propostas que objetivamente se colocam contra a estrutura vigente da produção capitalista, calcada em crescimento ilimitado movido a partir da queima de combustíveis fósseis, centradas em uma forte mitigação, com as quais evidentemente me alinho (e que, acredito, são as melhor alinhadas com as evidências objetivas levantadas pela Ciência do Clima) até alternativas bem mais palatáveis aos olhos do grande capital.
Hoje na EGU-2015 tivemos uma sessão sobre uma dessas supostas alternativas: a Geoengenharia (contra a qual já me posicionei),
com ênfase especialmente para avaliar as possibilidades de aplicação do que está
se convencionando chamar, num eufemismo irritante, de “gerenciamento de
radiação solar” (ou SRM, do inglês solar radiation management). Filosoficamente já teria seríssimos problemas em aceitar que a questão climática possa ser tratada como um "problema de engenharia". Mas para mim, além disso, já há evidências suficientes para definitivamente
desconsiderar essa suposta “solução” para limitar o aquecimento do sistema
climático terrestre a 2°C (o que também, na minha opinião, já é um alvo
insuficiente).
Como descrevi em uma postagem anterior a “engenharia
climática” via “gerenciamento de radiação solar” implica em lançar partículas
refletoras na estratosfera terrestre, a fim de reduzir a insolação. A lógica é
simples e, à primeira vista, parece fazer sentido: a presença aumentada de
gases de efeito estufa aumenta a energia retida no sistema terrestre, mas isso
seria compensado por uma diminuição da radiação solar incidente. A forçante
radiativa seria zerada, o desequilíbrio energético desapareceria e o planeta
pararia de aquecer.
No entanto, têm sido apontado
problemas sérios relacionados à geoengenharia como método para conter o
aquecimento global. Algo realmente comparável a efeitos colaterais.
Primeiro, há uma diferença significativa entre o mundo como
é hoje (ou como era antes do período pré-industrial ou como seria se as
concentrações de CO2 tivessem sido estabilizadas no valor seguro de
350 ppm) e um mundo com mais CO2 e menos radiação solar, ainda que a
temperatura média global num caso e no outro possa ser a mesma. O próprio relatório do IPCC é crítico quanto à adoção da geoengenharia, particularmente SRM: "A modelagem indica que métodos de SRM, se realizáveis, tem o potencial de compensar um aumento de temperatura global, mas eles também modificariam o ciclo hidrológico e não reduziriam a acidificação oceânica. Se o SRM for interrompido por alguma razão, há alta confiança que as temperaturas globais na superfície subiriam muito rapidamente até valores consistentes com o da forçante dos gases de efeito estufa." (do Sumário para Formuladores de Políticas do AR5), conclusões baseadas nos resultados do GeoMIP (Projeto de Intercomparação de Modelos sobre Geoengenharia)
Até mesmo Ken Caldeira, um dos pais da ideia de
alterar deliberadamente aspectos do clima terrestre para “consertá-lo”, em sua
apresentação, admite evidências de que os efeitos colaterais podem ser bastante
sérios (Caldeira e Cao, EGU-2015): “as simulações de geoengenharia solar tipicamente mostram uma
redução na precipitação”. O próprio Caldeira explica a razão: “a geoengenharia
solar reduz a evaporação e a evaporação precede a precipitação”. Como no
balanço global do ciclo hidrológico a precipitação está essencialmente em
balanço com a evaporação (tudo o que sobe, tem de descer, não?), menos
evaporação implica menos precipitação.
Ainda segundo Caldeira, uma maior quantidade de CO2
na atmosfera tende a contribuir com a queda na evaporação por dois motivos:
primeiro, “o [aumento de] CO2 tende a estabilizar a atmosfera
especialmente sobre os oceanos, levando a uma camada limite atmosférica mais
úmida”, com esse umedecimento reduzindo a evaporação; segundo, “o [aumento de]
CO2 tende a diminuir a evapotranspiração ao menos segundo a maior
dos modelos de superfície, porque as concentrações mais altas de CO2
permitem que as plantas fechem os estômatos de suas folhas para evitar perda de
água”. Explicados esses mecanismos, a conclusão é clara: “Na maior parte das
simulações com altas concentrações de CO2, estes efeitos que tendem
a suprimir a evaporação são mascarados pela tendência de o aquecimento, causado
pelo CO2, aumentar a evaporação”. Ou seja, nas simulações de
geoengenharia, em que este aquecimento é compensado pela redução da radiação
solar, os efeitos de secagem deixam de ser mascarados e emergem.
Resumindo, das palavras insuspeitas de um dos defensores
originais da ideia, a geoengenharia é
incapaz de regular ao mesmo tempo os botões da temperatura e da precipitação
(isso para ficarmos em apenas duas variáveis atmosféricas, que não são as
únicas importantes para nós, nossos recursos hídricos, nossa agricultura, os
ecossistemas terrestres). Ajusta-se um e o outro é desregulado, mostrando só
por essa amostra que um sistema complexo como o clima terrestre dificilmente
pode ser tratado como uma máquina cheia de botões ou como um objeto que pode
ser quebrado e depois consertado.
A acidificação oceânica pode inviabilizar a existência de formas mas de vida cujas conchas são compostas de carbonato de cálcio |
Mas um argumento ainda mais forte contra a geoengenharia via redução da insolação foi apresentado no trabalho de Tjiputra e Grini. O conhecimento convencional da comunidade é que essa classe de geoengenharia poderia garantir a regulação das temperaturas globais, com efeitos colaterais sobre outras variáveis (como a precipitação), mas não traria solução nenhuma para a questão da acidificação oceânica. Afinal, como sabemos, uma maior concentração de CO2 na atmosfera faz com que ele se dissolva no oceano, tornando-o mais ácido (A reação química de formação do "ácido carbônico" e sua dissociação é simplesmente CO2 + H2O ↔ H2CO3 ↔ H+ + HCO3).
Acontece que como bem mostrou um dos autores, existe outro fator, que é a temperatura. Como nossa experiência com qualquer refrigerante mostra, a solubilidade dos gases em líquidos é diminui com o aumento da temperatura e no oceano, em relação ao CO2 não podia ser diferente. Na simulação com mais CO2 na atmosfera, mas sem geoengenharia, a temperatura sobe e parcelas importantes do oceano passam a absorver menos desse gás. Mas na simulação com geoengenharia, as temperaturas são controladas (essa é a ideia) e o oceano, mais frio do que na simulação anterior, absorve mais CO2 e a acidificação é, portanto, acelerada.
A geoengenharia é como uma droga que não apenas produz vários efeitos colaterais como possui uma característica cruel: uma vez iniciada, não pode ser interrompida! |
Nesse sentido, a analogia que me vem à mente em relação aos que ainda insistem em "receitar" geoengenharia/SRM como remédio para o aquecimento global é a de um médico cujo paciente, fumante, está com um pequenino tumor e, ao invés de propor o óbvio, ou seja, retirar o tumor, continuar monitorando, propor uma dieta e zerar o fumo, propõe que o paciente prossiga no vício, afinal "temos quimioterapia" para quê, se não para consertar tudo depois?
Outros trabalhos na mesma sessão - incluindo um sobre furacões no Atlântico e outro sobre temperatura e precipitação no Hemisfério Sul, além de outro que abordou justamente o processo transiente - mostraram outro problema da geoengenharia por SRM: quando "desligada", isto é, quando é interrompida a injeção de partículas refletoras na atmosfera, seu efeito cessa (afinal elas sedimentam, mesmo que lentamente quando na estratosfera, da mesma maneira que aerossóis lançados por grandes vulcões). Mas o CO2 permanece na atmosfera. O resultado é que o aquecimento que estava "guardado na gaveta" (bem como as perturbações no ciclo hidrológico e outros aspectos do clima) vêm praticamente todo de uma vez: em uma escala de poucos anos, uma mudança climática abrupta se estabelece, o que implica que uma vez a humanidade optando pela geoengenharia, se torna escrava dela. É uma distopia tecnológica ao meu ver profundamente perigosa. Quanto poder teria a(s) companhia(s) que dominassem esse novo "nicho de mercado", não?
O desenvolvimento de tecnologias é uma decorrência quase natural do conhecimento científico e ciência e tecnologia andam comumente de mãos dadas. Mas existe um sério divórcio entre as duas em determinadas condições, especialmente quando o conhecimento científico avança ao ponto de desnudar efeitos deletérios e aspectos nocivos do que um dia foi considerada uma tecnologia "segura", que tenha contribuído para "o progresso". A fé cega na tecnologia, nesse sentido, torna-se oposta aos próprios princípios nos quais a ciência se baseia (a criticidade, a cumulatividade do conhecimento, o consenso baseado na preponderância das evidências etc.). E aí a tecnociência, a ciência voltada estritamente para o desenvolvimento tecnológico (e, frequentemente, com suas mãos e pés atados aos interesses do grande capital) em si também se reveste de um caráter anticientífico.
Nesse contexto, é preciso aceitar as conclusões que advém da Ciência do Clima que revela cada vez mais o quão delicado e frágil é o equilíbrio climático que dá sustentação à teia planetária de vida à qual pertencemos apenas como mais um fio. E nesse sentido, reduzir drasticamente as emissões de CO2 e demais gases de efeito estufa, até essencialmente chegarmos em um sistema produtivo neutro em relação ao carbono, ainda que isso imponha restrições econômicas (com as quais defendemos que sejam os ricos a com eles arcar), é a única solução possível para a crise climática, ou seja, mitigação sim, geoengenharia não! Como diz Naomi Klein, se o sistema produtivo vigente entrou em antagonismo com o sistema climático, há que se alterar o único dos dois sistemas cujas regras podem efetivamente ser mudadas. E como as leis da Física não podem ser alteradas, já que o capital declarou guerra ao mundo físico, é melhor que nos posicionemos do lado deste último. Ambientalmente, socialmente, moralmente é o correto. E, além disso, deixem-me contar um segredo: contra o mundo físico, o capital (e seu delírio de crescimento ilimitado) não tem chance alguma...
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