A Agência Internacional de Energia anunciou que as emissões de CO2 do setor de energia não cresceram de 2013 a 2014. Mas há razões para euforia? |
Em sua grande parte, houve entusiasmo junto ao movimento ambientalista, mas a mim parece que a necessidade de celebrar pequenas vitórias para manter o nosso ânimo e reduzir o fardo psicológico dos revezes ambientais (e também os revezes em direitos, na luta pela igualdade, justiça e democracia) pode nos jogar para um terreno arriscado, que é o de enxergar essas pequenas vitórias onde elas de fato não existem.
EMISSÕES "CONGELADAS" EM VALORES TÃO ELEVADOS NÃO SÃO UM BOM NEGÓCIO
O CLIMA NAS MÃOS DA CHINA, A CHINA NAS MÃOS DOS MERCADOS GLOBAIS.
Como no gráfico anterior, mas discriminado por País. China, em tom de vinho acelera suas emissões após a virada do século. Fonte: http://infographics.pbl.nl/website/globalco2-2014/ |
calamidade pública) e ao consumo de água (as termelétricas demandam água continuamente e em grandes quantidades, ao contrário das eólicas). Caso medidas extremas não sejam adotadas, as estimativas são de que já em 2020 as usinas termelétricas a carvão que movimentam o gigantesco parque industrial chinês que segue em expansão consumiriam nada menos do que 27% do suprimento total de água naquele País, ou o equivalente a 34 bilhões de metros cúbicos anuais. A crise hídrica chinesa chega ao ponto de que enormes usinas de dessalinização foram instaladas. Numa ironia melancólica, essas usinas consomem grandes quantidades de energia elétrica e, sendo estas geradas a partir de termelétricas, chega-se na figura da serpente que engole a própria cauda, fora outros problemas, incluindo o próprio custo. A China tinha de encontrar uma saída para a crise ambiental (poluição mais demanda hídrica) imediatamente.
HÁ ASPECTOS SISTÊMICOS QUE SERVEM DE BARREIRA AOS CORTES NAS EMISSÕES
A notícia da volta do crescimento do investimento em renováveis em si parece boa, mas mesmo esse crescimento revela uma lógica perversa. Na crise econômica de 2009 os investimentos haviam desaparecido. As emissões de CO2 caíram entre 2008 e 2009 (de 32,0 GtCO2 para 31,6 GtCO2), mas assim que a economia global se recuperou, as emissões cresceram junto e só aí as energias renováveis receberam novos incentivos. O gráfico ao lado, por sinal, não deixa dúvidas sobre algumas questões: primeiro, a forte correlação entre aumento das emissões de CO2 e crescimento do PIB. No período mostrado, o único momento em que as emissões caíram (-1,25%) coincidiu com a retração da economia (-2,00% de variação no PIB global), em 2009. E a recuperação da economia em 2010 se deu claramente com base na queima de combustíveis fósseis (4,14% de aumento no PIB, para 4,43% de aumento nas emissões). Ao mesmo tempo, os investimentos em renováveis só cresceram mais na última década quando a economia em si cresceu.
Em resumo, o que temos é que na lógica do sistema, investimentos em renováveis só são possíveis em momentos de crescimento econômico e os mecanismos de financiamento, subsídios, etc. chegam mesmo a ser revertidos durante as crises. Reduções efetivas das emissões (e ainda assim modestas) só têm ocorrido em condições de crise e contração da economia global como foi o caso de 2009, então continua a grande questão: o domínio do capital, que requer crescimento contínuo, mostra-se incapaz de assegurar uma solução duradoura e segura para o problema da necessária queda das emissões.
Nesse contexto, condicionar uma maior participação de renováveis na matriz energética ao crescimento econômico é algo profundamente negativo, pois o desejo de crescimento ilimitado, como sabemos, tem levado a produção de bens na sociedade capitalista a esbarrar em outros limites do sistema Terra além da mudança climática. A ampliação da base renovável na matriz energética é um imperativo das Leis da Física, e não pode ficar ao sabor dos desejos e instabilidades do mercado.
Também não se pode celebrar de fato quando se vê que todo o esforço de investimento em renováveis na última década não foi capaz de levar a uma redução das emissões porque efetivamente elas são simplesmente acrescentadas ao aparelho energético, somando-se à base fóssil, ao invés de substituí-la, ainda que gradualmente!
ranking da Forbes para o setor (Total, Chevron, Gazprom, Phillips 66 e Eni), a movimentação total é U$ 2,9 trilhões, quase 10 vezes mais! Para completar o quadro, o investimento em combustíveis fósseis (especialmente para descobrir novas jazidas num contexto em que sequer se pode pensar em queimar todas as já existentes!) também é bastante superior àquele colocado em todas as formas de energia renovável. Ainda que este tenha quintuplicado em pouco mais de uma década (contra um aumento de 56% no investimento em combustíveis fósseis), a distância a ser vencida ainda é enorme.
AS EMISSÕES PRECISAM, NA VERDADE, SER REDUZIDAS IMEDIATAMENTE
Nosso desejo é o de resolver a crise climática e chegar a um clima estável, com temperatura global média em torno de apenas um grau acima do período pré-industrial. A irresponsabilidade para o clima grassou em tal nível, com os governos nacionais ignorando o problema, as corporações de energia, especialmente as petroquímicas, se beneficiando e os negacionistas atuando em sua ópera-bufa, que aparentemente nos esquecemos do que deve ser a real meta. E de acordo com James Hansen, "se a humanidade pretende preservar um planeta similar àquele no qual a civilização se desenvolveu e ao qual a vida na Terra está adaptada, a evidência paleoclimática e a mudança climática em curso sugerem que o CO2 precisa ser reduzido dos níveis atuais para no máximo 350 ppm", conforme mostrado neste artigo (de Hansen e vários colaboradores).
Em um texto anterior, mostramos qual a dimensão da tarefa e esperamos que o efeito disso ser o de paralisia diante de uma tarefa "impossível", a movimentação vigorosa diante da urgência e grandiosidade da mesma.
Ora, para manter a concentração de CO2 constante em qualquer que seja o valor, é necessário que a quantidade de CO2 emitida (somando-se fontes naturais e humanas) seja balanceada pela quantidade de CO2 retirada pelos chamados sumidouros, então precisamos efetivamente zerar as emissões em algum momento, qualquer que seja o nosso alvo de concentrações estabilizadas, se tivermos um em mente!
Com efeito, ainda que miremos no alvo de 450 ppm como concentração constante de CO2 na atmosfera desejada, que nos dá uma chance aproximadamente tão grande de não desestabilizar irreversivelmente o sistema climático (isto é, limitarmos o aquecimento a 2°C ou menos) quanto a de escapar de duas roletas russas, há muito o que se fazer, e com uma enorme urgência.
Se mantivéssemos um crescimento em progressão geométrica das emissões aos assustadores 3,8% (média percentual da década passada) teríamos provavelmente um inferno estabelecido antes da metade do século. Ultrapassaríamos 450 ppm já em 2030 e chegaríamos em 2050 próximos a 600 ppm. Algo também tenebroso aconteceria se mantivéssemos emissões crescentes em progressão aritmética (adotando como razão a taxa de 1,1 GtCO2 a mais por ano, a média da década anterior). Neste caso, 450 ppm seriam atingidos em 2031 e 535 ppm seria a concentração atingida na metade do século XXI.
Íbis, o autointitulado "pior time do mundo" é famoso pelas goleadas que levou ao longo de sua história. |
Na verdade, o que concluímos é que só uma redução da ordem de 4,5% ao ano seria capaz de evitar que ultrapassássemos a barreira de 450 ppm. Mais, para qualquer meta mais ambiciosa (que deveria, sim, ser aquela colocada, pois 350 ppm é o limite seguro, não 450 ppm), é preciso urgentemente que implantemos mecanismos de sequestro de CO2. Daí não se pode comemorar o não-crescimento das emissões em 2014 como um jogador do Íbis marcando gol de honra. É preciso ir para cima, como time grande... A mudança na matriz energética é urgentíssima, mas também o rompimento com a lógica de crescimento contínuo na demanda da energia. Substituir aceleradamente combustíveis fósseis (e também nucleares) por solar, eólica e outras (maremotriz, por exemplo) precisa ser feito em consonância com o combate ao produtivismo e consumismo que demandam que a roda produtiva gire cada vez mais rápido.
ANALOGIAS
Quero crer também que noções de cálculo diferencial e integral ajudariam no entendimento do problema, mas poderíamos traçar, para simplificar, um paralelo com o movimento de um automóvel, que está infelizmente rumando ao precipício...
Só há uma solução para o problema: é o carro parar (antes do despenhadeiro, claro). Sua posição deve permanecer constante. Em nosso caso, o que precisa parar de mudar é a temperatura global do planeta, e em condições seguras. O carro parado, em segurança, é o equivalente a uma atmosfera com concentração de CO2 mantida constante em no máximo 350 ppm. Nós ligamos o carro em 1988, quando as concentrações de dióxido de carbono na atmosfera ultrapassaram essa marca.
Qualquer concentração de CO2 acima de 350 ppm implica em seguir rumo ao precipício. Pouco mais? É ir lentamente. Muito acima de 350 ppm é ir em alta velocidade. O CO2 estacionado, por exemplo, nos 400 ppm atuais significa como seguir em frente, mas apenas em segunda marcha. Para um CO2 constante, precisaríamos de emissão zero (pelo menos em termos líquidos, isto é, descontando um eventual sequestro de carbono).
Portanto, emissões de CO2 estacionadas (como de 2013 para 2014), ao levarem a um aumento das concentrações de CO2 é o equivalente a ir rumo ao precipício em velocidade cada vez maior, só que com aceleração constante. Já emissões de CO2 crescentes (a tônica de todo o período recente) é o mesmo que ir rumo ao precipício não só com velocidade cada vez maior, mas também com aceleração cada vez maior. No cálculo diferencial, isso é a derivada terceira da posição. É o que zeramos, por apenas um ano até que se prove o contrário. Precisamos zerar a derivada segunda (a aceleração)... e a derivada primeira (a velocidade). Precisamos parar o carro. Precisamos de freio. Hora de pisar fundo nele, não de festejar. Já não é possível uma frenagem totalmente suave, admitamos. Mas quanto mais se postergar o pisão no pedal do freio, pior será: mais risco de derrapagem, mais desconforto para os passageiros, menos garantias de que se conseguirá efetivamente parar o automóvel antes do despenhadeiro.
Outra analogia possível, já que mostrei a vocês o vínculo entre as duas coisas em artigo recente, é com o fumo.
Imagine o seguinte cenário: Um ente querido seu fuma. Na verdade fuma há tempos, e mais do que isso: ele/a começou fumando 1 cigarro/dia, mas acrescentou a essa conta 1 cigarro a mais a cada ano. Ou seja, no segundo ano, fumava 2 cigarros/dia, no terceiro 3 cigarros/dia. 19 anos depois, uma carteira por dia, e assim por diante. Hoje, a figura consome 2 carteiras/dia. Daí, ele/a é alertado para o fato de que há um pequeno tumor no pulmão. A recomendação é clara: é preciso parar de fumar. Só assim seria possível combater o tumor, ainda curável. Mas aí ele resolve parar de aumentar a cota de cigarros, ou seja, decide passar a fumar uma quantidade constante de cigarros (40 por dia), deixando de acrescentar um a mais a cada ano nessa conta. Você comemoraria? (A analogia é tal que o tumor equivale às mudanças climáticas (em estágio inicial não produz sintomas tão graves e é reversível), ao contrário de uma metástase, que equivaleria a uma ruptura climática completa e irreversível. O consumo do cigarro, a causa direta do câncer equivale à queima de combustíveis fósseis, causa direta do aquecimento global. A fumaça do cigarro assim, equivaleria às emissões de CO2 e as substâncias tóxicas acumuladas no pulmão à sua concentração. O efeito cancerígeno dessas substâncias é análogo ao forçante radiativa/desequilíbrio energético).
Valeu, Flórida! |
Negar a existência do precipício à frente ou de um tumor maligno no corpo de um ente querido não resolve nenhum problema. É tão óbvio, mas na Flórida, o termo "aquecimento global" foi banido, ou seja, a solução oficial é não falar no assunto, não lidar com ele...
E aí chegamos a outro ponto... Como lidar com um problema de tamanha monta? Como manter-se de pé, com o peso da realidade, sem se deixar distrair por pequenas ilusões como o "não-crescimento das emissões"?
SE O PESO DA REALIDADE OBJETIVA CAIR SOBRE NÓS, SUPORTAREMOS?
Nietzsche se questionava o quanto de realidade ele poderia suportar. Era uma alusão à fragilidade humana, claro; à nossa necessidade constante de se apegar a uma ou mais esperanças, ainda que fugazes e ilusórias, a fim de que a realidade crua e nua não despenque por cima dos nossos neurotransmissores.
Mas não podemos permanecer prisioneiros de nossa própria fragilidade psicológica, de uma tentativa de habitar um mundo de doces ilusões, em busca de uma voz maternal de consolo a nos sussurrar "está tudo bem". A violência, a desigualdade, a crueldade são bestas que atacam esse mundo de devaneio confundido com esperança, com força a cada dia. A brutalidade com que a humanidade trata a si mesma e com a qual semelhante interage frequentemente com semelhante é por si uma realidade quase insuportável. Mas apesar de receber alguma influência externa (de um ambiente que module a abundância de alimento e água, por exemplo), essa face da barbárie é praticamente circunscrita a nós mesmos e sendo nós não apenas frágeis e cruéis, mas também mentalmente flexíveis, poder-se-ia imaginar de fato a possibilidade de disputar uma cultura de paz e solidariedade contra ela.
No entanto, estou convencido de que nenhum contraste é maior do que o da nossa fragilidade mental (que nos faz disparar diversos mecanismos de defesa psicológica) com a fortaleza, potência e violência de nossos "corpos estendidos". Se nos deslocamos a baixas velocidades no reino animal, temos um nado limitado e não sabemos sequer nos deslocar eficientemente em copas de árvores, para não falar do voo, compensamos tudo com automóveis, navios, aviões. Nossos membros superiores não são mais apenas braços, mas perfuratrizes, colheitadeiras, escavadeiras, que nos permitem alcançar bem mais longe. E eis que um ser apenas um pouco menos assustado do que seus antepassados que mais lembravam roedores, surgidos à sombra dos dinossauros, se tornaram senhores da Terra. Com o mesmo cérebro adaptado à vida na savana, a colher frutas, caçar pequenos animais (grandes caças em grupo, pelo que parece eram, em realidade, raras), fugir de grandes predadores e proteger bebês, lançamo-nos numa aventura que nos fugiu do controle. Da agricultura e pecuária à grande indústria, megacidades, a ocupar 3/4 das terras providas de solo agricultável e usar 2/3 da água que circula em rios, a revolver mais sedimentos com agricultura e mineração do que os processos continentais naturais, a crise ecológica global é, com a mudança climática à frente, a expressão de um tempo em que mudanças promovidas pela espécie humana na atmosfera terrestre e em seus ciclos biogeofisicoquímicos ocorrem no mesmo ritmo ou até em velocidade maior do que mudanças culturais minimamente profundas em nossa sociedade. A pegada humana é descomunal e altera tão sensivelmente o sistema Terra ao ponto de dominar a cena. Infelizmente, a cena dominada pelo homem, o Antropoceno, não tem sido uma cena agradável.
ISSO (O COLAPSO CLIMÁTICO) É ALTAMENTE ILÓGICO, CAPITÃO!
Ao meu ver, o descompasso entre a nossa competência limitada de mudar apenas de forma relativamente lenta nossa cultura e nossa organização sócio-econômica (mesmo entremeada de rupturas na superfície, a componente inercial da História segue um curso mais lento e processual por baixo) e nossa crescente e assustadora capacidade de alterar o Sistema Terra é parte da crise. Outra tem a ver com as nossas defesas psicológicas que, diante de fato tão grave, são uma verdadeira auto-sabotagem. Tenho certeza de que o discurso falho, grosseiramente falso e desonesto dos negacionistas, por mais que a indústria fóssil e outros setores o bancassem, com apoio da mídia, não pegaria, se não fosse, pelo menos em certa medida, aquilo que a maioria de nós realmente gostaria de ouvir: "está tudo bem, filhinho, pode continuar a brincar de queimar petróleo e carvão".
Insistir em combustíveis fósseis levando o planeta à beira da ruína? Isso é altamente ilógico! |
Concluo dizendo que, se há algo realmente positivo na notícia de que as emissões não cresceram de um ano para o outro, é que ela mostra que, para reduzir as emissões, as tecnologias estão a mão (embora seja impossível deixá-las ao sabor das "decisões" da "mão invisível"- e estúpida - do "deus-mercado"). Importante frisar que, como mostramos ser necessário zerar as emissões, mas também sequestrar CO2, a tecnologia para este processo é ainda mais simples e antiga, e se chama fotossíntese. "Desmatamento negativo", ou apenas reflorestamento, nesse caso, pode ser a parceira perfeita das energias renováveis como solução da crise climática no âmbito de uma sociedade justa, livre e igualitária. E se soluções estão à mão, é preciso colocar o leme da nave e o freio da locomotiva em mãos melhores; é fundamental apostar nossa esperança e nosso otimismo em agentes reais de luta, de mudança... e de comemoração.
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