sexta-feira, 13 de março de 2015

Negacionismo: Apague essa ideia!

Contar com meia dúzia de "cientistas" vendilhões e pseudo-
especialistas para semear a dúvida não é novidade. A indústria
fóssil está imitando a indústria tabagista. O que é lamentável é
o truque "colar" outra vez!
O cigarro causa câncer. Na verdade, dados do Instituto Nacional do Câncer são cristalinos: o tabaco é responsável por 23 óbitos por hora em nosso país; incluindo um quarto das doenças vasculares (incluindo derrame cerebral) e das mortes por angina e infarto do miocárdio (quase metade na faixa abaixo de 65 anos), pela quase totalidade de mortes por bronquite crônica e enfisema pulmonar (85%) e câncer no pulmão (90%, sendo que fumantes passivos representam um em cada três entre os 10% restantes), por quase um terço das mortes decorrentes de formas diversas de câncer (boca, laringe, faringe, esôfago, estômago, etc.). São nada menos do que 4700 substâncias tóxicas identificadas na fumaça do cigarro (50 das quais comprovadamente carcinogênicas): monóxido de carbono, que gera um composto estável que bloqueia as funções da hemoglobina e é produzido abundantemente pela combustão, cianeto de hidrogênio (o mesmo gás das câmaras de execução), benzeno (cancerígeno, frequentemente ligados a casos de leucemia em trabalhadores do ramo petroquímico), nitrosaminas, cetonas, xileno, tolueno (ou seja, solventes para desde esmaltes de unha até tinta industrial), compostos orgânicos policíclicos, terebentina, alcatrão, níquel e metais pesados (arsênio, cádmio etc.)... A lista é interminável.


UMA NUVEM DE FUMAÇA... DE CIGARRO

Mais médicos fumavam Camel...
Mas durante anos, a indústria do tabaco contou com o apoio de institutos privados, "cientistas" vendidos, políticos comprados e de setores da grande mídia para vender a dúvida como produto, isto é, a ideia de que a ciência não tinha evidências fortes de que o cigarro causava câncer, de que ainda havia muitas incertezas, de que não fazia sentido adotar medidas de contenção ao fumo. Nunca se tratou da construção de um corpo coerente de hipóteses testáveis, de apresentação de evidências, adotar o mínimo de rigor cientifico e de honestidade intelectual. Nunca. Sempre teve a ver com a possibilidade de conquistar a simpatia ou ao menos de neutralizar a opinião pública e de sobretudo paralisar a sociedade e o poder público, evitando que restrições ao consumo do tabaco (e claro, ao lucro) fossem adotadas. Confusão e dúvida, é claro, era o mínimo que viria na cabeça do público em geral se médicos se prestavam ao papel de garotos-propaganda...

O sucesso... em ludibriar a opinião pública e
garantir a continuidade dos superlucros
E eis que a indústria do tabaco conseguiu, durante um longo período de tempo, o seu intento. Durante muitos anos, mesmo após estudos que deixavam clara a ligação de causa e efeito (fosse via experimentos em laboratório com cobaias fosse através de estudos estatísticos robustos com amostragem inequívoca em meio à população humana, que atestavam a correlação entre consumo de tabaco e câncer), ainda era permitido fumar em locais fechados, ainda havia uma "classe de fumantes" dentro dos aviões, grávidas fumavam, as revistas e as TVs eram inundadas por propagandas que sempre vinculavam os fumantes à virilidade e à prática de esportes e as mulheres à sensualidade (claro, uma dose de sexismo não faria mal à indústria desde que todos e todas fumassem!). Até os carros de fórmula um pareciam carteiras de cigarro sobre rodas.

O custo desse sucesso? Diante da estimativa de uma mortalidade anual ligada ao tabaco de 5 milhões de pessoas, em vinte anos o ponto de partida é nada menos do que 100 milhões de vidas, sendo necessário, é claro, estimar quantas pessoas passaram a ser desencorajadas a fumar pelas restrições, proibição de propaganda, campanhas de esclarecimento acerca dos malefícios do fumo, etc., bem como os ditos fumantes passivos que tenham sido efetivamente salvos por não ter de compartilhar das 4700 substâncias tóxicas compartilhadas pelo coleguinha ao lado no avião, por exemplo. Partindo do dado de um total de 721 milhões de fumantes em 1980, antes de medidas restritivas em diversos países, numa população mundial de 4,4 bilhões e supondo que sem essas medidas a percentagem de pouco mais de 16% de fumantes na população se mantivesse constante, teríamos, em 2012, nada menos do que 1,12 bilhão de fumantes no mundo em 2012, ao chegarmos em 7 bilhões de habitantes. As estimativas são de que naquele ano havia 967 milhões de fumantes (menos de 14%). A redução pode parecer modesta, mas estamos falando de mais de 150 milhões de pessoas que provavelmente foram poupadas dos malefícios do consumo do tabaco, sem falar dos fumantes indiretos.

QUEM ESTAVA POR TRÁS

Marcas de cigarro da R.J. Reynolds
Uma parte importante da história começa com Frederick Seitz, físico de formação, com uma invejável carreira a partir da Física do Estado Sólido, tendo chegado ao posto de dirigente máximo da Universidade Rockefeller e nada menos do que presidente da Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos na década de 1960. Ele mantinha vínculos aparentemente esporádicos com diferentes setores privados, mas foi em 1979, após se aposentar da Universidade Rockefeller que ele assumiu o posto de consultor... da Companhia de Tabaco R.J. Reynolds. A empresa, que hoje posa de boazinha em seu website, falando de impostos pagos, de redução de danos e prevenção dos males dos seus produtos, passou muitos anos patrocinando um negacionismo dos mais sórdidos, com o que contou com Seitz como um dos principais articuladores. Ele serviu como consultor da R. J. Reynolds oficialmente por quase uma década, período no qual fundou o "George C. Marshall Institute" (GMI), uma instituição privada que passou a organizar o combate à maioria da comunidade científica em uma série de assuntos, do tabaco à defesa do projeto "Guerra nas Estrelas" de Ronald Reagan (contra o qual se levantaram importantes personalidades científicas como Carl Sagan e outros cientistas comprometidos com causas populares, como os organizados na Union of Concerned Scientists); dos CFCs ao aquecimento global. Dentre os financiadores do GMI por um longo período destacou-se... a ExxonMobil...

Parece um velhinho simpático, certo? Mas é um canalha. Fred
Singer destila toda a sua verborragia contra a comunidade cien-
tífica há décadas, seja para defender a indústria do tabaco, con-
testar o conhecimento estabelecido sobre o papel dos CFCs na
destruição da camada de ozônio, seja sobre mudança climática.
Poderia ser apenas uma personalidade doentia, cuja voz é am-
plificada até por sua titulação (PhD em Física), mas há mais em
jogo: Singer é um velho aliado da indústria petroquímica, tendo
servido a ela como consultor.
Outra peça importante nesse tabuleiro foi Fred Singer, austríaco, engenheiro eletricista e físico (sim, sendo eu físico de formação tenho uma vergonha infinita da impostura que lamentavelmente não parece ser tão rara assim no meio). Singer foi particularmente ativo na tentativa de desacreditar os estudos que a Agência de Proteção Ambiental dos EUA organizaram e que atestavam os sérios riscos a que eram submetidos os fumantes passivos ("second-hand smoke"). O tom de Singer sempre foi desrespeitoso e agressivo, taxando o consenso construído pela comunidade científica como "junk science".  Singer parecia mais cauteloso do que Seitz no que dizia respeito aos seus vínculos, mas estes começaram a ser revelados a partir de um artigo para o "Instituto Cato", mais uma instituição de fachada, esta controlada pelos irmãos Koch,  David e Charles, que estão entre as 10 maiores fortunas do mundo. Como se fosse alguma surpresa, além de outras consultorias, Singer terminou admitindo seu vinculo de consultor com... a ExxonMobil, ora veja (cinicamente, porém, dizia que "suas fontes de financiamento não influenciavam" as suas "pesquisas", como se de fato ele fizesse alguma!)

No caso do tabaco, outros nomes, incluindo de leigos com papel mais assemelhado ao de bufões a cientistas de conduta ética questionável, financeiramente ambiciosos e/ou idelologicamente conservadores ou reacionários, foram recrutados na mesma lógica, através de pseudo-institutos de pesquisa, sempre vinculados a grandes corporações. O que ficou claro porém é que tão relevante quanto o crime cometido em postergar as medidas de restrição ao fumo foi o estabelecimento de um modus operandi de negação da ciência! Esta, produzida coletivamente, a partir de acúmulos na comunidade, vários deles incrementais, constrói um consenso, isto é, uma posição amplamente aceita, baseada em um corpo de evidências sólido, reveladas por meio de diferentes linhas de investigação, por meio de diversos cientistas e grupos de pesquisa (inclusive grupos que podem concorrer entre si, por prestígio, financiamento etc.). Geralmente esses consensos envolvem o trabalho de uma comunidade ou subcomunidade inteira, não raro centenas ou milhares (quando não muitos milhares) de cientistas. Mas não mais que um punhado de vozes "dissidentes", com um discurso pré-fabricado para atender a interesses econômicos, políticos e/ou ideológicos aparece, lançando mão do jargão científico, atraindo a atenção da mídia e produzindo na opinião pública a sensação de que há um debate científico em torno do tema quando não há.

CHUVA ÁCIDA, DDT, CAMADA DE OZÔNIO

A tragédia do tabaco se repetiu inúmeras vezes, em diversas versões de negacionismo. Termelétricas a carvão conseguiram a adesão de vendilhões para negar que elas eram as responsáveis pela chuva ácida e a consequente degradação seja de ambientes, com a mortandade de árvores e contaminação de solo e corpos d'água, seja de edifícios e de patrimônio histórico e arquitetônico. Hoje essa mentira foi devidamente desbaratada. Mas somente muito depois de se estabelecer cientificamente que eram efetivamente alguns compostos resultantes da queima do carvão (comumente impuro, contendo enxofre) que, lançados na atmosfera, se combinavam com a água das nuvens e da chuva, produzindo, por exemplo, ácido sulfúrico.
"DDT é bom para mim-im-im", cantarolava o tumor
cancerígeno... Hoje, a Monsanto mudou a letra para
decantar seu milho transgênico.

Sobre o DDT, (diclorodifeniltricloroetano) durante muito tempo a Monsanto (sim, ela mesma), responsável pelo produto (e também pelo famigerado "agente laranja", poderoso desfolhante usado pelos EUA na Guerra contra o povo do Vietnã), procurou ocultar os seus riscos para a saúde humana. Até hoje, figuras sem credencial como Roger Bate (economista do American Enterprise Institute, outra aberração conservadora travestida de instituto de pesquisa) assumem uma postura negacionista, se posicionando contra o banimento do DDT. Claro que, nesse caso, o objetivo claro não é resgatar esse produto especificamente, mas colocar o "bode na sala" para evitar que se avance no combate geral aos agrotóxicos.

O mecanismo de destruição do ozônio estratosférico é simples
e conhecido. Sob a influência da radiação UV, a molécula de
CFC libera um átomo livre de cloro. Este reage com o ozônio,
produzindo oxigênio e ClO, que é reativo e também transfor-
ma ozônio em oxigênio, liberando um novo átomo de cloro,
que ataca outra molécula de ozônio e assim sucessivamente. 
E sobre a camada de ozônio, o mesmo se deu. Provavelmente a insistência teria permanecido e o quadro teria se agravado, não tivesse a própria Du Pont, maior interessada inicialmente na propaganda negacionista, desenvolvido produtos alternativos. O mecanismo é simples e muito bem conhecido. Certos halocarbonetos, como os CFCs (clorofluorocarbonetos) e outros contendo átomos de Bromo, são extremamente estáveis (por isso mesmo úteis como gases de refrigeração), exceto... na presença de radiação ultravioleta. Próximo à superfície, essa radiação é extremamente atenuada, por conta precisamente da camada de ozônio estratosférico, mas ao ser transportado para as porções superiores da atmosfera, os CFCs podem se desintegrar.  No entanto, ainda hoje, há remanescentes do negacionismo do ozônio, mesmo tendo ficado claro o papel positivo do Protocolo de Montreal, que baniu a produção de vários gases e sabendo-se que a estabilidade da camada de ozônio ainda pende por um fio.


OS NEGACIONISTAS SE UNEM EM TORNO DA INDÚSTRIA FÓSSIL

As maiores empresas de tabaco dos EUA, comparadas com as
companhias petroquímicas (ExxonMobil e Chevron, também
dos EUA, e outras três gigantes: Shell, anglo-holandesa,
Sinopec, chinesa, e BP, britânica).
Mas a repetição da conduta farsante dos negadores dos efeitos do tabaco encontrou um reflexo perfeito, ampliado mil vezes, na negação da mudança climática. Tudo aqui é superlativo, a começar dos interesses econômicos em jogo. O que é a indústria de tabaco diante da indústria petroquímica? Uma anã. A própria RJ Reynolds fatura U$ 8,24 bilhões anuais. A Phillip Morris International (do conhecido Marlboro), fatura U$ 30,9 bilhões. Parece muito. E é. Mas se compararmos essas duas companhias dos EUA com as suas primas petroquímicas? A ExxonMobil fatura anualmente U$ 394 bilhões, mais de 10 vezes a soma da RJ Reynolds e da Phillip Morris enquanto a Chevron, com seus U$ 212 bilhões também faz as "gigantes do tabaco" parecerem mercearias de esquina.

"Dúvida é nosso produto pois é a melhor maneira de competir
com o corpo de fatos que existe na mente do público em geral.
É também o meio de estabelecer uma controvérsia. (...) A
dúvida é também o limite do nosso 'produto'. Infelizmente".
Com muito mais dinheiro (e combustível) para queimar, é evidente que a ofensiva fossilista tinha tudo para ser bem mais pesada. O negacionismo climático atingiu a grande mídia com enorme amplitude, as campanhas sórdidas de difamação contra cientistas honestos, incluindo alguns dos maiores expoentes da Ciência do Clima (como James Hansen e Michael Mann), são constantes. Posando de especialistas, cientistas de outras áreas (físicos, geólogos, engenheiros) ou mesmo pessoas sem formação acadêmica em ciências naturais (economistas, advogados, jornalistas) têm criado um "clima" de confusão, dando a aparência de um debate não resolvido e até mesmo de uma reação contra "cientistas do sistema" (sim, aqueles que, junto a ONGs ambientalistas, participam da "grande conspiração" das multinacionais de painéis solares e bicicletas...).

As táticas são muito parecidas. Incluem acusar o "outro lado" (na verdade o único lado coerente e honesto nessa história, que é o da comunidade científica em seu conjunto) daquilo que eles mesmos, os negacionistas, praticam (falsificar, produzir informação de qualidade duvidosa, incapaz de constituir-se em evidência e de ser publicada em periódicos científicos com revisão e, sobretudo, pegar dinheiro de empresas interessadas em negar a gravidade da crise climática). Organizam os seus pequenos círculos (inteiramente minoritários na comunidade científica - no caso da Ciência do Clima, uma oposição a 97% dos especialistas) para fazer com que sua voz pareça maior do que é, incluindo manifestos, cartas e materiais que, evidentemente, não passam de peças de propaganda político-ideológica, sem lastro algum na ciência. Procuram setores reacionários dotados de recursos financeiros e alguma capacidade de articulação para se promoverem. Mas sobretudo, o seu intento não é "vencer um debate". Eles sabem que não existe nenhum! Seu produto, como bem diz o memorando vazado, de autoria dos que se articulavam contra medidas restritivas ao tabaco, é a dúvida. E ao mesmo tempo, admitem cinicamente, é o máximo que eles conseguem obter, já que suas posições nada tem a ver com a realidade, apenas com seu mundo de mentiras e manipulações a serviço do lucro de meia dúzia, independente do que isso signifique para milhões (no caso do tabaco) ou bilhões de pessoas (no caso da mudança climática).

"Mesa de debate" com Sepúlveda da Fonseca,
do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, fachada
da TFP e, claro, o negacionista-mor, Molion.
Nos EUA, foi assim que Seitz, Singer, Marc Morano, Willie Soon e outros tantos, com apoio da Fox News, com a postura dúbia de outros meios de comunicação, com a postura sórdida da direita republicana, venceram até agora no limite do que eles se propõem: a dúvida e a paralisia. No Brasil, a história se repete e o uso de carisma, o domínio do jargão e principalmente o fato de falarem o que as corporações querem ouvir (companhias de agronegócio e mineração, Belo Monte e as empreiteiras a ela vinculadas, bancos que têm capital investido nesse setores, etc.) têm garantido aos negacionistas um espaço generosíssimo na mídia escrita e televisiva. Das entidades do agronegócio, em cujos auditórios Molion desfila como se estivesse em casa à Rede Bandeirantes, que atuou como um braço político dos ruralistas nos últimos anos, especialmente nas mudanças do Código Florestal; da TFP (que organizou, com o mais célebre negacionista brasileiro, que usa do fato de um dia ter frequentado a Organização Meteorológica Mundial para vender sua imagem, um evento antiambientalismo por ocasião da Rio+20 - chamado ridiculamente de "rio menos vinte") a Aldo Rebelo (estranhamente alçado à condição de ministro da Ciência e Tecnologia!), a rede de apoio deles é densa.

Para indústrias assassinas, a mentira é
o único caminho. O lucro é o objetivo
maior a ser defendido. E os negacio-
nistas são sempre seus agentes.
Entender o sentido dessas ligações e não ter medo de denunciá-las é, portanto, algo urgente. Se você se indigna com a quantidade de pessoas, incluindo fumantes passivos, que poderiam ter sido poupados de enfermidades graves, sofrimento e morte prematura, caso medidas restritivas e educativas relativas ao fumo tivessem sido adotadas logo que os malefícios do tabaco ficaram evidentes, precisa ir além. Pense no sem número de seres humanos, especialmente os mais pobres, e também não-humanos, que, a cada tonelada de CO2 lançado à atmosfera ficam mais vulneráveis a secas, enchentes, tempestades, furacões, incêndios florestais...

O produto vendido pelos negacionistas é sim, em primeira instância, a dúvida, a confusão. Mas da mesma maneira como não se compra câncer, mas sim cigarro, é preciso refletir sobre o que de fato está dentro da sua embalagem.

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