"(...) E se não fosse uma raiz de mucunã arrancada aqui e além, ou alguma batata-branca que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos se arrastando e gemendo (...)"
(Rachel de Queiroz, em "O Quinze")
Açude Pentecoste, de grande porte, que abastece a cidade de mesmo nome e no qual a pesca era abundante hoje está com apenas 1,7% da capacidade (dado do Portal Hidrológico do Estado do Ceará) e operando no volume morto. |
BREVE NOTA SOBRE O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO PECÉM (CIPP)
Mapa da metade norte do Ceará, indicando a localização do CIPP em relação a Fortaleza. |
A lista de absurdos cometidos no processo de instalação do CIPP é imensa. Envolve remoções de comunidades tradicionais, conflito territorial e por recursos naturais com o povo indígena Anacé, guerra de isenções fiscais, empréstimos - como sempre - maternais por parte do BNDES (1,4 bilhões só para a térmica), fornecimento de água doce bruta com abatimento de 50% no preço para as térmicas, impactos demográficos e sociais sobre a região, especialmente após a vinda em massa de trabalhadores (em sua maioria esmagadora homens, recrutados de outras cidades e outros estados, como Bahia e Maranhão) para as obras de construção das empresas.
Prestação de contas do candidato Camilo Santana (PT-CE), mostrando financiamento da Aço Cearense que, ao lado da coreana Posco, está envolvida no empreendimento da Siderúrgica do Pecém |
O PECÉM NÃO CONSUMIRÁ ÁGUA EQUIVALENTE A "APENAS METADE" DE FORTALEZA. AFIRMAR ISSO É MENTIR PARA DOURAR A PÍLULA
Segundo o próprio governo do estado, "o consumo de Fortaleza e Região Metropolitana é entre 6 m³/s e 7m³/s". Segundo dados do "Cidades Sustentáveis", que oferece uma informação mais precisa, em 2012 (o dado mais recente disponível e o maior valor encontrado), em Fortaleza, o consumo total de água (residencial, comercial, público, industrial e misto) foi 115.124.336 de metros cúbicos, o que significa, ao dividirmos esse valor por 366 dias e 86400 segundos num dia, que Fortaleza consome 3,64 m³/s.
Metáfora da realidade: o buraco é bem mais embaixo do que o que se imagina. E quase não tem água... Não dá para "tibungar", Cid Gomes... |
COMO CLIMATOLOGISTA, O CHEFE DE GABINETE DA COGERH É UM TOTAL FRACASSO.
Berthyer Peixoto, o chefe de gabinete da COGERH entrevistado pela Tribuna, saiu com esta: “A siderúrgica só entra em operação provavelmente em 2015. E ela não entra em carga máxima, mas progressivamente. Já a refinaria é para 2017. Até lá o próprio Eixão vai estar em carga máxima e com certeza vamos ter sistemas hídricos reestabelecidos”. A matéria do tribuna complementa: "até lá, a esperança é de que a quadra chuvosa se regularize e que as obras iniciadas pelo governo garantam abundância de água."
Primeira questão é que é preciso dizer como chegamos a ter uma reserva hídrica como a de 3 anos atrás... E para isso, usamos uma excelente ferramenta da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme): o seu Calendário das Chuvas (e também da ausência delas...).
Tivemos dois anos seguidos de chuva acima da média: 2008 (14,7% acima) e 2009 (52,3% acima!). O segundo foi absolutamente excepcional, tendo perdido, se não me engano, somente para 1985, na série da Funceme. E o primeiro, embora na média do estado, não tenha sido algo extraordinário, as chuvas foram normais no litoral e muito acima da média justamente onde era importante para abastecer principalmente o Castanhão (32,1% acima). Sim, tivemos "sorte", isto é, as circunstâncias do acaso nos foram favoráveis no que diz respeito à água. Mas 2010 foi um ano seco (32,6% abaixo) e 2011 (28,5% acima) um ano chuvoso, cujos efeitos se cancelaram, mas psicologicamente deram a impressão de que mesmo a seca voltasse, como voltou em 2010, ela não teria impactos duradouros. Daí em diante, 3 anos de seca consecutivos: 2012 (51,7% abaixo), 2013 (31,5% abaixo) e 2014, faltando ainda os meses de novembro e dezembro, mas sem maiores chances de melhorar muito os 33,7% abaixo, a números de hoje.
No cassino do clima, a COGERH entrou como aquele jogador cuja confiança excessiva foi falsamente reforçada por uma condição atípica a favor. Deveria agir racionalmente agora que teve uma condição atípica contrária! Mas não: certo de que iria arrebentar na roleta e no caça-níqueis, continuou apostando contra a Matemática das probabilidades (e, como veremos, contra a Física do aquecimento global)! E agora, se ainda não está completamente endividado, já perdeu dinheiro, na soma total (ou melhor, perdeu coisa muito mais valiosa: ÁGUA).
Projeções regionalizadas de clima nos biomas brasileiros da
Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica
(setores nordeste e sul/sudeste) e Pampa para os períodos
de início (2011-2040), meados (2041-2070) e final
(2071/2100) do século XXI, baseados nos resultados
científicos de modelagem climática global e regional. As
regiões com diferentes cores no mapa indicam o domínio
geográfico dos biomas. A legenda encontra-se no canto
canto inferior direito. Fonte: 1º Relatório de Avaliação
do Painel Brasileiro sobre Mudanças Climáticas (PBMC).
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Para quem acha que os 3 anos de seca consecutivos seriam o pior cenário possível e que é possível dar crédito ao otimismo da COGERH, é bom rever o posicionamento. Primeiro, por conta das projeções climáticas futuras. Na Figura acima, mostro as projeções disponibilizadas pelo Painel Brasileiro sobre Mudanças Climáticas, em um documento do qual sou um dos autores principais. Especificamente no que tange a estas projeções, devo dizer, com sinceridade, que é preciso olhar para elas com cautela, por uma série de fatores (a começar do fato de ser mostrada para os trimestres de verão - dezembro a fevereiro - e inverno - junho a agosto - austrais, sendo que nossas chuvas se concentram em Março e Abril). De qualquer modo, apesar de haver uma dose significativa de incerteza, principalmente nas projeções de precipitação, a simples possibilidade de que chuvas mais escassas ou mais irregulares (ainda que em mesma quantidade) em relação ao presente se combinem a temperaturas vários graus acima das condições atuais (2-3 graus em meados do século e 3-4 ao final, com aumento na evaporação) já deveria servir de alerta para que a política hídrica para o semiárido se baseasse em uma forte dose de parcimônia.
Devo lembrar, como afirmei em vários momentos, que um clima mais quente é de mais extremos: tanto mais secas quanto mais enchentes, provavelmente acontecendo em várias escalas. Dentro dos meses de estação chuvosa, mais veranicos, entremeados por dias de chuva muito intensa e potencialmente danosa para a agricultura,
O QUE NASCEU INSUSTENTÁVEL, SERÁ INSUSTENTÁVEL. VAI FALTAR ÁGUA. A QUESTÃO É: PARA QUEM.
Maior variabilidade em várias escalas, incertezas, chances nada desprezíveis de redução do total de chuvas. Temperaturas mais elevadas que facilitam a evaporação. Não há controle local sobre esses processos. Podemos e temos a obrigação de contribuir para mitigar as mudanças climáticas, combatendo nós mesmos as emissões locais, incluindo a exploração de petróleo que deve se iniciar após os leilões do petróleo em 2013 (com lotes sendo arrematados no mar, das proximidades de Paracuru a Icapuí), a presença de uma refinaria, o crescimento da frota de veículos automotores na capital cearense e no estado como um todo, e a operação de uma termelétrica a carvão, etc (neste ponto, permitam-me fazer uma digressão: as mais de 2 milhões de toneladas anuais de carvão queimados pela UTE Pecém equivalem a mais de 7 milhões de toneladas de CO2, o que equivale, a depender do bioma, das espécies etc., a 100 ou mais quilômetros quadrados de floresta, área ocupada por 8-9 parques do Cocó, por exemplo). É evidente que a solução depende de articulações globais numa escala muito maior do que aquela em que tomadores de decisão daqui têm ingerência direta, mas não deixa de me causar estranheza que o argumento "faça a sua parte" que é jogado para o indivíduo, por exemplo, "economize água na sua casa" não é assumido pelos próprios governos locais.
Se a Hidra Ilógica tem 7 cabeças, o Cérbero do Pecém possui três: Termelétrica, Siderúrgica e Refinaria |
As cacimbas das pequenas propriedades secam e as famílias sofrem com o desabastecimento. Enquanto isso, grandes em- presas consomem a água de açudes inteiros... e querem mais! |
A panacéia, após o Eixão, que sugará água diretamente do Castanhão e do Orós para as grandes indústrias do Pecém (aumentando a sangria que já é feita pelo agronegócio de fruticultura para exportação e pela carcinicultura no Vale do Jaguaribe), é a famigerada "Transposição do São Francisco". Tentaremos abordar o tema da transposição em maior detalhe noutro momento, incluindo a pesada propaganda dela como "solução para a seca", em contraste com o verdadeiro objetivo, de garantir água para o grande capital, mas por enquanto, acho que vale a pena alertar para evidências de que as alterações ambientais e climáticas estão causando sérios ao "Velho Chico", desde a secagem de suas nascentes, ao assoreamento, desmatamento e erosão. Assumir, a priori, que o São Francisco será capaz de a longo prazo garantir a sustentabilidade de todas as atividades às quais ele já serve de suporte já é algo temerário. Impor novas demandas ao uso da água de sua bacia, então, parece-me mais um ato irresponsável a se somar aos inúmeros que já citei.
QUINZE 2.0?
Diferença entre a temperatura do mar em outubro de 2014 e o normal para esta época do ano (anomalia). Fonte: CPTEC/INPE. |
E esse cenário possível de chuvas escassas, em 2015, é particularmente preocupante dada a situação dos reservatórios hídricos cearenses. O boletim do portal hidrológico do Ceará para o dia 17/11/2014 aponta um quadro em que eles contêm apenas 23,3% do seu volume ocupado, numa tendência descrescente que deve prosseguir pelo menos nas próximas semanas, enquanto o período seco não se encerra. Dos 149 açudes monitorados pela COGERH, nada menos que 118 aparecem abaixo de 30% de sua capacidade e nada menos do que 73 aparecem com menos de 10% da água que podem armazenar, isto é, metade dos reservatórios está praticamente seca, incluindo o Banabuiú, terceiro maior açude do estado, com apenas 7,48% (estava com 59,8% em janeiro de 2013), o Pentecoste, sexto maior, com somente 1,66% (tinha 39,4% em janeiro de 2013), o General Sampaio, oitavo maior, com meros 3,37% (estava com 55,0% em janeiro de 2013). O próprio gigantesco açude Castanhão, que em 2009 estava com capacidade plena e no início do ano passado ainda continha 61,7% do seu volume ocupado, já está apenas com 28,6%.
A seca não é um fenômeno apenas climático (com as mudanças climáticas antrópicas, chamar mesmo o aspecto físico, das chuvas, de "fenômeno natural" já tornou-se de certa maneira impróprio...). É comum atribuir-lhes aspectos meteorológico, hidrológico, agrícola e socioeconômico, numa cascata que não é linear e que é entremeada de vários aspectos que podem amplificar ou diminuir riscos e vulnerabilidades.
A realidade terrível vivida na infância por Rachel de Queiroz, uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos, em 1915 é contada por ela num romance que carrega esse número. Ano que vem será o centenário da "Seca do Quinze" que emergiu no esteio da seca extrema de 1913, cujos efeitos se acumularam. Reviver aspectos dramáticos dos impactos de anos sucessivos de seca em pleno século XXI parece ficção, surrealismo. "O Quinze revisitado", "O Quinze 2ª Edição", ou melhor, "O Quinze 2.0" aparece como uma obra fantástica. Afinal, com as técnicas dominadas hoje para obras e medidas, com o sucesso crescente do conhecimento do clima e da capacidade de prever suas variações sazonais, interanuais e até em escala mais longa, com as possibilidades de se aplicar uma política de gerenciamento de recursos hídricos democrática e voltada para o interesse da maioria, o que explica o colapso de São Paulo e a iminente repetição da obra de Rachel de Queiroz nestas bandas do Nordeste só pode ser algo mesquinho, voraz, psicótico e doentio. É a sede de lucro, que deseja se sobrepor à sede da maioria.
"Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados,
feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz". Assim, Rachel de Queiroz narrava a morte do filho pequeno da família de Chico Bento, que inadvertidamente comeu mandioca crua e se envenenou. Hoje, muito mais veneno é destilado pela propaganda governamental, pelo cinismo empresarial, pela tentativa deles de esconder uma realidade como a que se revela hoje em São Paulo: a de que não há água para todo mundo e que hoje é o grande capital (agronegócio e indústria pesada) que dela se apropria!
ÁGUA NÃO É CASSINO! TEMOS UM GOVERNO IRRESPONSÁVEL QUE APOSTA NA SORTE!
Nada mais falso! Esse grau de mentira não pode ser admitido! Para repor o nível dos reservatórios vamos precisar de anos com chuva acima da média e para que em 2017 estivéssemos com "carga máxima" e "sistemas hídricos reestabelecidos” precisaríamos que 2016 fosse extremamente chuvoso, já que 2015 é carta fora do baralho (e, pelo contrário, deve contribuir para agravar o quadro!). É da aposta num evento improvável como o de 2009, que só se repete a cada duas décadas ou mais em que se baseia a COGERH na gestão da água no Ceará?
Tamanha irresponsabilidade precisa ser exposta e mais do que isso! A sociedade cearense precisa ter acesso imediato a TODAS AS OUTORGAS de água concedidas pela COGERH, TODOS OS SUBSÍDIOS concedidos, além do que foi ofertado à UTE-Pecém e finalmente precisa ter respeitado o seu direito à água, decidindo como e onde os recursos hídricos sejam alocados. Água não rima com lucro e para que a nossa torneira não seja fechada, é preciso que fechemos a torneira para o grande capital! Água para quem precisa!
POST-SCRIPTUM: A MAIOR CONSUMIDORA DE ÁGUA, A MAIOR EMISSORA DE CO2
Segundo o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa, o Ceará é um dos cinco estados em que as emissões de gases de efeito estufa deram um salto de 2012 (os outros são Roraima, Pará, Mato Grosso e Maranhão). Nos demais estados, o motivador principal foi o recrudescimento do desmatamento, mas o principal fator no caso do Ceará foi o setor de transporte e energia, impulsionado pelo crescimento da frota de automóveis mas principalmente pelo início do funcionamento da térmica do Pecém em 2012! Funcionando com apenas uma das turbinas, ela já emitiu cerca de 2,5 milhões de toneladas de CO2, sendo sozinha responsável por 10% das emissões do estado em 2013. É evidente se tratar de um empreendimento insustentável sob todo e qualquer aspecto que se examine.
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