Cena de "A Velha a Fiar", curta-metragem de 1964 |
A "Velha a Fiar" é uma canção popular, que inspirou um curta-metragem brasileiro de 1964 com direção de Humberto Mauro, tendo como trilha a canção, interpretada pelo Trio Irakitan.
Começando por uma interação simples, entre a velha senhora e uma mosca, que lhe tira o sossego, a música segue - de certa forma até irritante - concatenando outros elementos: a aranha, que importuna a mosca; o rato, que incomoda a aranha etc.
E esse exercício de concatenação foi uma analogia que me veio à mente para tentar explicar aquele que está por trás da urgência de agir em torno da questão climática. Ao palestrar ontem junto à Pós-Graduação em Engenharia, na Universidade Federal do Ceará, um colega cientista e velho amigo, Francisco Assis de Souza Filho me disse: "Xande (o apelido carinhoso que retribui o meu 'Siszim'), o que você traz é, de fato, a urgência do tempo!"
Mencionei, mais de uma vez, o fato de que, ultrapassando o limite seguro de 350 ppm de CO2 atmosférico, bem como outros limites que demarcam o "espaço seguro de operação" para a humanidade, propostos por Röckstrom et al. (2009), estamos acelerando a chegada de um futuro indesejável, de carência e barbárie, e, no limite, de extinção. Mas a urgência se dá não apenas por conta das escalas de tempo dos processos físicos, que não negociam com os desejos imperiais de corporações e governantes. A urgência se dá também por conta do encadeamento de eventos que é necessário para que voltemos a esse "espaço de operação seguro", ultrapassado pela civilização que abandonou a roca de fiar pelo tear mecânico, a vapor, a carvão, a eletricidade, na costura do que parecia ser um novo tempo.
Para que os impactos deletérios das mudanças climáticas sobre os ecossistemas, as culturas agrícolas e sobre a disponibilidade hidrica parem de aumentar, é preciso que a temperatura global comece a cair. Mesmo que ela começasse a cair agora, ainda assim eventos extremos e crises hídrica e alimentar se arrastariam por algum tempo, mas diminuindo em intensidade (no que depender dos aspectos climáticos, claro).
Para que as temperaturas parem de subir, as concentrações de CO2 precisam começar a cair. Mesmo que elas começassem a cair agora, ainda assim a temperatura continuaria a subir por um certo período, para só então se estabilizarem e começarem sua redução.
Para que as concentrações de CO2 parem de aumentar, é preciso antes que as emissões desse gás comecem a diminuir. Mesmo com emissões menores do que as de hoje, o CO2 continuará a se acumular a taxas mais lentas, até que sua concentração chegue a um valor máximo, para só então passar a se reduzir.
Ou seja, emissões perturbam concentrações, que perturbam balanço energético, que perturbam temperaturas e outras variáveis meteorológicas, que perturbam o ciclo hidrológico e os ecossistemas, dos quais dependem, da primeira à última instância, a satisfação das nossas próprias necessidades de existência, nós que somos filhos do carbono e da água. E o grande "tear" petroquímico, minerador, siderúrgico, etc. do capital o pai das emissões.
Quiseram chamar o tecido que saiu do grande tear capitalista de Antropoceno, mas mais adequado talvez seja chamá-lo Koyaanisqatsi, ou "vida maluca, vida em turbilhão, vida fora de equilíbrio, vida se desintegrando, um estado de vida que pede uma outra maneira de se viver" na língua do povo Hopi.
Como muitos já sabem, não reivindico nenhuma forma de mito ou religião, mas para mim é evidente que o mito Hopi, incluindo a profecia de um de seus líderes, Pena Branca, me parece uma metáfora válida para o atual contexto:
A "Rocha da Profecia Hopi" |
Em outras palavras, a lógica da morte e a desintegração trazidas pela ultrapassagem dos limites do Sistema Terra em virtude da hiperprodução de mercadorias por parte do capital precisa ser incomodada, perturbada, importunada e, por fim, derrotada, nas melhores condições possíveis para uma reconstrução/regeneração da própria sociedade. O embate que ora travamos pode, se não agradar forma de profecia Hopi, assumir uma das últimas frases da canção entoada pelo Irakitan: "Estava a morte no seu lugar. veio a vida lhe incomodar". Temos de ser a vida a incomodar a morte, a matar a morte. Temos de ser a vida, reivindicando o direito de voltar a fiar em paz.
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