quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Oceano azedo: há mais sobre o CO2 do que a mudança climática

Mesmo que o CO2 não fosse um gás de efeito estufa, mesmo
que as não-linearidades do sistema climático jogassem a nos-
so favor e não contra... As emissões desse gás precisariam
ser detidas para evitar um holocausto oceânico.
Quando nosso blog foi criado há 4 anos, já havia evidências impressionantes sobre a gravidade da crise climática e após a publicação do 5º relatório do IPCC e de uma série de artigos científicos nos periódicos mais conceituados, apenas ficou mais nítido que o quadro é simplesmente o de uma catástrofe se desenvolvendo perante nossos olhos: degelo, secas, ondas de calor, supertempestades, recordes climáticos e eventos anômalos um após o outro. Mas imagine por um instante que os negacionistas das mudanças climáticas tenham razão. Sim, sabemos que eles não têm, que aquilo que eles propagam são mentiras grotescas, e que o aquecimento global é real, é antrópico e é perigoso. Mas façamos brevemente esse esforço...



Projeção de mudança no pH oceânico segundo dois cenários:
baixas emissões (RCP2.6, linha azul) e altas emissões (RCP
8.5, linha vermelha). Fonte: Ocean Acidification Summary
for Policymakers
.
Imagine que a molécula de CO2 não tem propriedades físicas que a tornem capaz de absorver calor, que não haja relação entre a elevação de suas concentrações e o aquecimento observado no sistema terrestre. Pois é... Mesmo que isso não fosse puro non-sense, a presença aumentada de CO2 na atmosfera ainda assim teria tudo para produzir uma calamidade no sistema Terra, justamente na porção dele que recobre mais de 70% da superfície planetária: os oceanos. A razão é simples: quando o CO2 se dissolve na água, altera o seu pH, tornando-a mais ácida. Isto ocorre por meio de uma reação química bastante simples, produzindo ácido carbônico que tipicamente libera um próton.

A água do mar normalmente é alcalina, ou básica, mas a presença em maior quantidade de CO2 na atmosfera faz com que o mesmo se dissolva na água também em maior quantidade do que antes. O pH oceânico pré-industrial era próximo a 8,2 e as mudanças já ocorridas desde então levaram a uma redução em cerca de um décimo. Pode parecer pouco, mas como o pH segue uma escala logarítmica (ele é definido como o simétrico do logaritmo da concentração de cátions hidrônio presentes em um meio), a cada décimo a menos no pH a acidez do meio aumenta em 25,9%.

Razão de saturação para aragonita no período pré-industrial.
Quase todo o oceano se encontrava em condições de Ω > 3.
Fonte: Ocean Acidification Summary for Policymakers.
Além disso, especialmente na superfície e nos trópicos o ambiente é em geral supersaturado com respeito a minerais de carbonato como a calcita e a aragonita, que são os materiais a partir dos quais muitos organismos marinhos fabricam suas conchas e exoesqueletos. A variável que dá essa medida é a "razão de saturação", representada pela letra grega Ω (ômega). A supersaturação implica em valores de Ω maiores que 1,0. Se Ω = 1,0, o ambiente está exatamente "saturado". Já para Ω < 1,0, o ambiente é dito subsaturado e portanto a tendência dele é de remover o carbonato de onde ele se encontra depositado. Em outras palavras, Ω < 1,0 quer dizer que a água é corrosiva para as estruturas duras dos organismos marinhos em questão. Abaixo, a reação química na qual o carbonato de cálcio, na presença de ácido carbônico (resultante da dissolução do CO2 em água) é simplesmente dissolvido.


Projeção para a razão de saturação no final do século XXI no
cenário de grandes emissões de CO2. Quase todo o oceano
passa a exibir valores de Ω < 3 e em torno dos pólos, Ω < 1.
o que implica que a água se torna corrosiva para aragonita.
Existem estudos que mostram que a calcificação de corais depende fortemente dessa variável, não havendo grandes ecossistemas de corais para as localidades em que Ω < 3,0 para aragonita, o que sugere ser um limiar para esses organismos. Esses estudos também indicam que para 3,0 < Ω < 3,5, a concentração de carbonato é considerada baixa para os corais, sendo adequada para 3,5 < Ω < 4,0 e ótima para Ω > 4,0.

Dito isto, a projeção de como ficariam as condições oceânicas num cenário de grandes emissões é simplesmente assustadora. Primeiro, o pH marinho deve sofre alterações enormes, com uma redução em média maior do que 0,4, o que, em outras palavras, significa praticamente triplicar a concentração de íons hidrônio. Em oceanos 3 vezes mais ácidos, a sobrevivência de todos os seres vivos que dependam da fixação de aragonita se torna impossível em largas porções do planeta. E com eles, vão embora todos os demais que deles dependem. E essa dependência é profunda. Pequenos moluscos conhecidos como pterópodes compõem a base da cadeia alimentar em diversas regiões. É o alimento do qual dependem inúmeras espécies de peixes e cetáceos e de outros invertebrados. Para além da destruição e contaminação de habitats, da caça e pesca indiscriminadas e até mesmo da mudança do clima, a acidificação oceânica pode ser o golpe mais mortal da grande extinção do Antropoceno, a 6ª extinção.

Cientistas da NOAA fizeram um experimento: colocaram
conchas de pequenos moluscos em água com o pH proje-
tado para 2100. O resultado é que as conchas praticamente
se dissolvem em 45 dias.
Os negacionistas estão errados, é claro. A física por trás do efeito estufa é bastante simples: moléculas com três átomos ou mais como o dióxido de carbono, o vapor d'água, o ozônio e o metano possuem modos vibracionais cuja frequência corresponde à da radiação infravermelho. Em outras palavras, esses gases absorvem calor, o que leva a um desequilíbrio no balanço de energia planetário e, portanto, ao aquecimento global. As não-linearidades do sistema climático amplificam esse processo, tornando-o o risco associado às mudanças climáticas muito mais severos. Mas mesmo que nenhuma perturbação no sistema climático adviesse de nossa fome insana de energia, que já nos levou a emitir 1,5 trilhão de toneladas de CO2 para a atmosfera, ainda assim precisaríamos interromper essas emissões de maneira urgente se quisermos salvar o maior de todos os biomas terrestres, o local onde a própria vida se originou e evoluiu em nosso planeta. A Terra não merece um oceano morto e azedo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Copo "meio cheio" não salva uma casa em chamas

Alok Sharma, presidente da COP26, teve de conter as lágrimas no anúncio do texto final da Conferência, com recuo em tópicos essenciais "...

Mais populares este mês