Neste artigo dou prosseguimento à análise iniciada no anterior, a Parte I, em que centrei no aspecto das contradições entre o objetivo anunciado de limitar o aquecimento global a uma anomalia de temperatura "muito abaixo de 2°C" ou mesmo de no máximo 1,5°C acima dos valores médios pré-industriais e a falta de definições claras de como cumprir tal objetivo. Como mostrarei, apesar de proclamadas a urgência e a gravidade da situação, o Acordo de Paris não é condizente com o evidente quadro de emergência climática e com a necessidade de compensarmos pelo enorme atraso no início das medidas necessárias para evitar um caos climático completo.
URGÊNCIA URGENTÍSSIMAComo vimos mostrando em diversos textos em nosso blog, existe uma urgência objetiva em atacar as causas da crise climática, cujas oportunidades de solução tornam-se cada vez estreitas. Como mostro neste texto, para que o planeta pare de aquecer em algum momento, é preciso que as concentrações de gases de efeito estufa se estabilizem em algum valor, o menor possível. Mas para isso, já que esses gases se acumulam na atmosfera, é necessário que as emissões sejam zeradas. Hoje, as emissões somente de CO2 estão acima de 35 bilhões de toneladas de CO2 por ano só considerando queima de combustíveis fósseis e produção de cimento, o dobro do que eram há 40 anos.
O motivo da "urgência urgentíssima", portanto, é nítido. Deixamos as emissões crescerem demais, construímos uma base "produtiva" gigantesca para atender à hiperdemanda de consumo, esmagadoramente dependente da queima de combustíveis fósseis como fonte de energia. A cada ano que adiamos o início das mudanças na matriz elétrica e de transporte, essas emissões, mesmo quando não crescem de um ano para o outro, se mantêm em níveis muito elevados, o suficiente para acumular 2 ppm de CO2 (ou mais) por ano numa atmosfera que já contém 400 ppm. A mensagem que a comunidade científica envia há anos é direta: quanto mais alto esse pico de emissões chegar, mais pesados terão de ser os esforços para puxá-lo para baixo; quanto mais demorarmos para iniciar esse processo, por conta do efeito cumulativo, menor será a janela de tempo que teremos para fazê-lo. Isso, se essa janela não se fechar, simplesmente.
PERDEMOS O BONDE E SE NÃO CORRERMOS, NÃO O ALCANÇAREMOS NA PRÓXIMA ESTAÇÃO
Trajetória de emissões dos quatro principais cenários analisados pelo IPCC na preparação do AR5. O RCP2.6 é o único deles que nos mantém com boa margem de segurança abaixo de 2°C e permite que 1,5°C se mante- nha como objetivo tangível. O problema? As emissões desse cenário já foram ultrapassadas... Figura adaptada de Sanford et al. (2014). |
Os problemas com esse cenário? Primeiro, ele precisava de uma inflexão nas emissões desde 2010, desde aquele ano interrompendo a lógica de crescimento contínuo do uso de combustíveis fósseis, e isso não aconteceu. Não há máquina do tempo que nos permita voltar atrás. Mesmo que os indícios recentes apontem para uma queda nessa taxa de crescimento, os 4-5 anos de atraso já colocaram as emissões num patamar acima daquele de quase estabilização entre 2010 e 2020 assumido no RPC2.6. Não basta pensarmos agora em estabilizar as emissões nesse patamar acima, pois as concentrações de gases de efeito estufa, particularmente o CO2, são o resultado cumulativo das emissões (para os que são familiares com cálculo diferencial e integral, podemos dizer, a grosso modo, que as concentrações são a integral das emissões). Daí, sequer é suficiente rebaixarmos, até 2020, as emissões até um nível em que reencontremos a trajetória de emissões do RCP2.6. Mesmo porque o aquecimento global é o efeito cumulativo do forçamento radiativo, ou forçante radiativa, desequilíbrio energético a grosso modo proporcional às concentrações (novamente evocando o cálculo, concluímos é como se o aquecimento fosse a integral da integral das emissões).
A conclusão é que seria preciso chegar em 2020 com emissões abaixo daquelas estabelecidas no cenário RCP2.6, a fim de que o tempo perdido seja compensado e permanecêssemos ligados, por alguns fios de esperança, à possibilidade de 1,5°C. Afinal, o efeito extremamente daninho dos preciosos 5 anos já perdidos, com emissões chegando a níveis incompatíveis com a estabilização do clima, com concentrações de CO2 e demais gases de efeito estufa atingindo níveis que não deveriam ter sido atingidos tão cedo, já está sendo percebido por todos os lados. Isso só será possível se agora, já, começarmos a cortar vigorosamente as emissões (na figura, isso significa passar a seguir a linha cinza tracejada), sem direito ao "platô", isto é, sem direito à transição de um período de uma década de emissões quase estacionadas em torno de 9 PgC/ano (33 bilhões de toneladas de CO2 anuais) e tendo de mirar imediatamente numa redução global, em 2020, para níveis de emissões de similares aos do ano 2005, algo em torno de 8 PgC/ano ou 29 bilhões de toneladas de CO2.
Lembramos também que a partir de 2020, o RCP2.6 implica em uma queda muito rápida nas emissões, sendo que, para os países desenvolvidos - como indica o Dr. Kevin Anderson, do Centro Tyndall - a velocidade dessa queda teria, a essa altura, de ser maior do que a da queda de emissões verificadas na finada União Soviética quando esta entrou em colapso. Daí, mesmo começando um corte severo nas emissões desde já, só seria possível reencontramos a trajetória do RCP2.6 por volta de 2030, quando as emissões devem cair para algo em torno de 6,5 PgC/ano ou 24 bilhões de toneladas de CO2. Cada adiamento implica que cortes mais violentos precisam ser aplicados logo em seguida e que o retorno à trajetória relativamente segura do RCP2.6 só pode ser recuperada num momento ainda mais posterior. Chega um limite, e esse limite é agora, no final desta década e início da próxima, em que será impossível, por mais drásticas que sejam as medidas e mais rápidas sejam as ações tomadas, manter-se com qualquer chance mínima de evitar um aquecimento maior que 1,5°C e até mesmo de segurar o trem descarrilado em temperaturas 2°C acima dos níveis pré-industriais.
Por fim, no contexto do RCP2.6, é preciso que no máximo em 2070, as emissões líquidas (emissões menos sequestro) cheguem a zero, passando a negativas a partir de então, algo somente possível através de reflorestamento em grande escala, para não ficarmos dependentes de tecnologias de CCS (carbon capture and storage, isto é, captura e armazenamento de carbono). Em virtude do atraso em iniciarmos o processo de inflexão e inversão na tendência das emissões, é provável que tenhamos de pensar em chegar a uma economia global de zero carbono antes desse prazo.
NÃO BASTA RECONHECER A INSUFICIÊNCIA DAS CONTRIBUIÇÕES VOLUNTÁRIAS
O mecanismo de Contribuições Pretendidas Nacionalmente Determinadas (Intended Nationally Determined Contribution, ou INDCs) através das quais os países voluntariamente apresentam metas de redução das emissões, tem se mostrado absolutamente insuficiente diante deste quadro, resultante da mais irresponsável procrastinação coletiva jamais vista na história humana. O próprio documento da COP21 "reconhece com preocupação" que "os níveis de emissões agregadas de gases de efeito estufa em 2025 e 2030 resultantes das contribuições pretendidas nacionalmente determinadas" não estão dentro de cenários compatíveis com o objetivo de limitar o aquecimento "bem abaixo de 2°C", chegando a mencionar o balanço de carbono apropriado.
A saída é uma só: deixar a grande maioria dos combustíveis fósseis no chão! |
Mostrar-se "preocupado" que as INDCs não dão resposta suficiente para o cumprimento do objetivo de conter o aquecimento global "bem abaixo de 2°C" não basta, especialmente quando sabemos o que precisa ser feito para resolver o "divórcio" que não é nada menos do que entre essas contribuições pretendidas e... a própria realidade! Percebe-se que o linguajar genérico e as constatações pela metade não nos servem mais. O que se quer com meias palavras e meias medidas? Um "meio desastre"?
CAVAMOS, CAVAMOS, CAVAMOS... MAS NÃO ENCONTRAMOS "COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS"
Qual o único lugar do Planeta Terra em que você pode cavar e cavar e cavar sem encontrar "combustíveis fósseis"? Sim, é no Acordo de Paris. É no mínimo estranho que o acordo internacional supostamente destinado a evitar uma catástrofe climática global e irreversível omita aquilo que é simplesmente a principal causa reconhecida das alterações no clima.
No preâmbulo, as "renováveis" são citadas somente uma vez, no parágrafo da parte inicial do texto do Acordo que fala da "necessidade de promover acesso universal a energia sustentável nos países em desenvolvimento". Mas em nenhum momento elas aparecem - como se deveria esperar - como via de substituição das fontes fósseis não apenas nestes países mas principalmente nos países mais desenvolvidos.
No Artigo 5, o Acordo chega a falar de "incentivos positivos para atividades voltadas a reduzir emissões de desflorestamento e degradação florestal", ou seja, menciona uma das causas importantes do aquecimento global explicitamente (o desflorestamento), mas sabendo-se que esta não é a maior delas. Globalmente, a mudança no uso do solo, com 10,0% das emissões de gases de efeito estufa (em CO2-equivalente) aparece em sétimo lugar, atrás da geração de eletricidade, dos processos industriais, dos transportes, da agropecuária (principalmente fermentação entérica), de prospecção/extração/refino/circulação de combustíveis fósseis e do setor residencial e comercial.
Essa omissão imperdoável em mencionar a principal causa do aquecimento global, os recuos sucessivos na força do termo adotado para definir o que se espera do balanço de carbono, a timidez em trazer à tona, como solução para a crise climática, as energias renováveis, especialmente solar, só demonstram o quanto as corporações mantêm seu poder de mando e um forte controle sobre aspectos-chave das negociações climáticas. É mais um motivo para ficarmos com muitas pulgas atrás de nossas orelhas, pois isso sugere que a aposta das grandes potências e das corporações, à medida em que se demonstre que nos afastamos mais e mais do caminho relativamente seguro do RCP2.6 com o adiamento do fim da indústria fóssil, seja numa combinação de CCS com geoengenharia. Isto é, que fiquemos reféns de supostas soluções (ou pseudo-soluções tão ruins quanto o problema, como é o caso da geoengenharia) que não estão ainda ao alcance e que, na melhor das hipóteses, teremos de pagar (provavelmente muito caro) por elas.
Mas como veremos na Terceira Parte de nossa análise, soma-se - à já patente fragilidade do Acordo de Paris - a precariedade dos recursos financeiros, dos mecanismos de transferência de tecnologia e do chamado mecanismo de "perdas e danos", algemas de um sistema econômico que aprisionou nosso sistema climático numa rota de desastre.
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