Daniel Tanuro, ambientalista/ecossocialista belga |
A Conferência do Clima (COP21, em Paris) levou, como
esperado, a um acordo. Ele entrará em vigor a partir de 2020 se for ratificado
por 55 dos países que são signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas
sobre Mudança do Clima e que representem pelo menos 55% das emissões globais de
gases de efeito estufa. À luz das posições tomadas em Paris, esta dupla
condição não deve levantar qualquer dificuldade (embora a não ratificação do
Protocolo de Quioto pelos Estados Unidos mostra que surpresas são sempre
possíveis).
"Bem abaixo dos
2 ° C": como?
O acordo estabelece o objetivo de "manter o aumento da
temperatura média global a bem menos de 2°C acima dos níveis pré-industriais e
de prosseguir os esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima
dos níveis pré-industriais, reconhecendo que este reduziria significativamente
os riscos e impactos das mudanças climáticas ".
Além disso, o preâmbulo do acordo afirma a sua vontade de
atingir estes objetivos, respeitando o princípio de responsabilidades comuns,
mas diferenciadas, direitos humanos, o direito à saúde, o direito ao
desenvolvimento, os direitos dos povos indígenas, os direitos das pessoas com
deficiência e crianças, a igualdade de género (promovendo o
"empoderamento" das mulheres), bem como a solidariedade entre
gerações, salientando a importância de uma "transição justa" para o
mundo do trabalho e tendo em conta as respectivas capacidades dos países.
Pode-se, naturalmente, apenas concordar com estas posições,
mas o texto aprovado pelos 195 países representados na COP não dá nenhuma
garantia de que elas serão efetivamente seguidas. Além disso, e mais
importante, ele permanece completamente vago no que diz respeito aos prazos
para os objetivos climáticos a serem alcançados: simplesmente diz que "as
partes têm como objetivo atingir um pico global das emissões de gases com
efeito de estufa o mais rápido possível, reconhecendo que o pico vai demorar
mais tempo para países em desenvolvimento, e realizar reduções rápidas
posteriormente, em conformidade com a melhor ciência disponível, de modo a
alcançar um equilíbrio entre as emissões antrópicas por fontes e remoções por
sumidouros de gases de efeito estufa na segunda metade deste século”. No
entanto, o ano de pico, a taxa anual de reduções globais das emissões após este
pico e o tempo preciso entre 2050 e 2100, onde o equilíbrio global das
emissões/remoções é conseguida condicionam a estabilização do aquecimento em um
ou outro nível.
Os objetivos do Acordo de Paris são justos, cientificamente e socioambientalmente. Mas o caminho que ele aponta não é coerente com os objetivos. Será mesmo possível "reconciliar o irreconciliável"? |
"Reconciliar o
irreconciliável?"
Com a palavra perante o plenário de participantes, em 12 de
dezembro de 2015, o presidente francês François Hollande saudou o fato de que a
conferência tinha "reconciliado o que parecia irreconciliável"
através da adopção de um documento "ambicioso e realista". "O
acordo decisivo para o planeta é agora", concluiu. Falando diante dele
como presidente desta COP, seu ministro das Relações Exteriores, Laurent
Fabius, saudou um resultado que representa "o melhor equilíbrio possível."
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima
data de 1992. Isso levou a uma sequela muito insuficiente: o Protocolo de
Quioto. Durante alguns anos, o desafio do clima tem contribuído cada vez mais
para minar a legitimidade do capitalismo e da credibilidade de seus gestores
políticos. Na esteira da COP em Paris já está claro que seremos confrontados
com uma ampla contra-ofensiva, que visa difundir a ideia de que o sistema, ao
contrário do que foi dito, é capaz de conter o desastre que criou, e que os
governos ao seu serviço estão à altura do desafio diante deles.
Aqueles que não acreditam na possibilidade de um capitalismo
verde, que não acreditam em particular na possibilidade de salvar o clima sem
pôr em causa a tendência fundamental do sistema para o crescimento, portanto,
têm interesse em examinar o acordo de Paris a partir desta ângulo: a COP21
"concilia o inconciliável"? Este artigo se concentra principalmente nisso.
Vamos voltar mais tarde em outros aspectos do acordo, tais como adaptação, o
apoio aos países do Sul, e assim por diante.
Então, teria Paris desmentido as esses terrivelmente mal-humorados
e pessimistas ecossocialistas? A resposta a esta pergunta é -pelo menos - 80%
"não". Por que 80%? Porque, com base na competência técnica do
secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas
(UNFCCC), podemos dizer que apenas um quinto do caminho para ficar abaixo dos
2°C de aquecimento foi adotado (e isso só em papel!). Em outras palavras, não é
um caso de o copo estar meio cheio e meio vazio: o copo de COP21 é quatro
quintos vazio, pelo menos. No fundamental, a catástrofe climática continua e a
evidência de que as coisas consideradas irreconciliáveis podem ser conciliadas
não foi apresentada. Vamos explicar.
Entre o Acordo e as
INDCs
Há dois elementos na negociação: o acordo aprovado em Paris
e seu preâmbulo, por um lado, e os "Planos Climáticos" projetados, que
cada país participante na Conferência adotou e enviou ao Secretariado da UNFCCC
em vista da COP, de outro. No jargão dos negociadores, estes planos climáticas são
designados pela sigla INDC (da sigla em inglês para "contribuições pretendidas
determinadas a nível nacional"). O texto adoptado em Paris coloca o objetivo
de um aquecimento reduzido a 2°C, tão próximo quanto possível para 1,5 ° C. Mas
as INDCs - que dizem respeito a 2025 ou 2030 - estão longe de atingir este objetivo:
de acordo com as estimativas que foram feitas, o seu efeito cumulativo seria o
de nos levar em direção a um aquecimento catastrófico de cerca de 3 ° C.
Há uma diferença clara entre o objetivo do Acordo de Paris e o resultado projetado da aplicação das metas voluntárias dos Países, como analisamos neste texto. É possível superar essa diferença "de forma rentável"? |
Esta contradição entre as declarações de intenção do acordo
e da realidade dos planos dos países que são signatários do acordo sobre o
clima não é um segredo. O preâmbulo do acordo adoptado em Paris "(aponta)
com séria preocupação a necessidade urgente de se combater a diferença
significativa entre o efeito agregado das promessas de mitigação das Partes em
termos de emissões globais anuais de gases de efeito estufa até 2020 (de um
lado), e as curvas de emissões acumuladas consistentes com o objetivo de manter
o aumento da temperatura média do globo no bem abaixo de 2°C e continuar a
desenvolver esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5 ° C (do
outro). "
Esta diferença entre o efeito cumulativo das INDCs e o
objetivo de 1,5 a 2°C adotado em Paris tem sido estudada pelo grupo de
trabalho ad hoc estabelecido na COP
em Durban para decidir sobre as formas e meios de reforçar o nível de ambição
da política climática (Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre a Plataforma de Durban
para Ação Avançada). Em 30 de Outubro de 2015, no âmbito da preparação da
COP21, este grupo de trabalho apresentou um relatório detalhado ao Secretariado
da UNFCCC.
Neste texto, a soma das emissões das INDC nos prazos de 2025
e 2030 é comparado com o "business as
usual" de emissões, por um lado, e, por outro, com variantes da
trajetória de redução para as emissões globais que deve ser seguida, de acordo
com o IPCC, para uma probabilidade de 66% de manter o aquecimento abaixo dos
2°C "pelo menor custo" (essas trajetórias constituem o que o último
relatório do IPCC chamado de "cenários de menor custo de 2°C").
O método dos autores do estudo é simples: eles tomam o
"business as usual" das
emissões como o cenário de referência (0% do objetivo de 2°) e o "cenário
de menor custo de 2°C", como o objetivo a se alcançar (100 % do objetivo de
2°); isto feito, eles expressam a soma das reduções de emissão projetadas pelos
INDCs como uma percentagem do objetivo de 2°. Aqui, a conclusão: "nessa
comparação, estima-se que as INDCs reduzam a diferença entre os cenários das
emissões do "business as usual"
e de 2°C em 27% em 2025 e 22% em 2030". É por isso que dissemos acima que
"o copo da COP21 está 80% vazio".
Aliás, não se exclui a possibilidade de este número de 80%
seja pior na realidade. As INDCs devem ser submetidas a uma avaliação mais
detalhada para verificar se os estados não têm inflado seus números, a fim de
passar uma imagem de bons alunos. Trapaças desse tipo já ocorreram várias vezes
em relação ao clima (nós lembramos, por exemplo, da maneira que os Estados
membros da União Europeia superestimaram as emissões de suas indústrias
poluentes, para que estas recebessem gratuitamente um máximo direito de emissão
revendido com lucro). O fato de que um bom número de INDCs depende fortemente
de remoções de CO2 por florestas, ou em reduções relativas às emissões, e
relativamente pouco sobre reduções líquidas, incentiva a desconfiança. Mas
deixemos este aspecto para os especialistas e vejamos como o Acordo de Paris
tem a intenção de preencher a lacuna entre as INDCs e o objetivo de um aquecimento
mantido entre 1,5 a 2°C.
Completando a lacuna
De antemão, devo confessar que um ponto dos relatórios do
IPCC continua inexplicável para mim: considerando que o diagnóstico da
gravidade das alterações climáticas é cada vez mais preocupante e o fenômeno
está crescendo muito mais rapidamente do que o projetado pelos modelos, como é
que o pico das emissões globais de gases de efeito estufa, a fim de que haja
uma chance de 66% de permanecermos abaixo do limite de 2°C foi adiada de forma
tão significativa entre o quarto e o quinto relatório? De acordo com o quarto
relatório, de modo a não exceder a 2°C de aquecimento, seria necessário que o
pico das emissões globais viesse até 2015; No entanto, de acordo com o quinto
relatório, ainda seria possível permanecer abaixo dos 2°C, começando a reduzir
as emissões globais só em 2020, em 2025, e ainda em 2030 - embora ao preço de
dificuldades cada vez mais significativas. Suponho que os autores dos relatórios
não queiram simplesmente de manter a chama da esperança, e que haja uma
explicação científica para este elisão. Mas eu não sei.
Em todo caso, vamos supor que o pico de emissões compatível
com 2°C ou 1,5°C pode realmente ocorrer apenas em 2025 ou em 2030, para voltarmos
à nossa pergunta: como é que o acordo de Paris prevê superar o fosso entre as
INDCs e o objetivo de um aquecimento "bem abaixo de 2°C"? A resposta
está no texto aprovado: através da revisão dos INDCs a cada cinco anos, com o objetivo
de aumentar a ambição. Esta revisão será baseada unicamente na boa vontade das
partes: o acordo não é juridicamente vinculativo e não prevê nenhuma
penalidade, por isso, enquanto a casa pega fogo, um compromisso tão fraco como
esse é apresentado como um avanço histórico.
Uma das questões importantes aqui é a do momento: o Acordo
de Paris entrará em vigor em 2020, e a primeira revisão terá lugar apenas em
2023. Lembremo-nos que foram necessários oito anos para ratificar o Protocolo
de Kyoto, que dizia respeito a apenas um pequeno número de países e reduções de
emissões irrisórias implementadas. E pensar que em dez anos, enquanto as
tensões geopolíticas estão crescendo, 195 países irão concordar rapidamente
sobre os 80% do caminho que ainda faltam para salvar o clima é na realidade jogar
roleta russa com o destino de centenas de milhões de seres humanos e com os
ecossistemas. A COP21 não invalida a análise ecossocialista, pelo contrário,
confirma-o: o sistema capitalista, quando se depara com os limites ecológicos, apenas
adia a solução dos problema que enfrenta, tornando-os cada vez mais complexos e
perigosos.
90% dos combustíveis fósseis precisam permanecer no subsolo para que tenhamos pelo menos 50% de chances de manter o sistema climático abaixo de 2°C de aquecimento em relação ao período pré-industrial |
Combustíveis fósseis
Em relação aos perigos, aqueles que insistem em acreditar
que um milagre aconteceu em 12 de dezembro em Le Bourget devem ainda fazer mais
duas perguntas:
- - Como é que as palavras ou expressões
"combustíveis fósseis", "indústria", "carvão",
"petróleo", "gás natural", "automóvel" (ou
“indústria automobilística”, e outros igualmente cruciais para o tema que nos
ocupa, não aparecem todos no texto de Paris? Que a palavra "energia"
é usada apenas duas vezes na mesma frase sobre a África (ainda mais em nome da
Agência Internacional de Energia)?
- - Como é que as palavras ou expressões
"transição energética", "sobriedade energética",
"reciclagem", "reutilização", "bens comuns",
"localização" em nenhum momento são usados? Que a expressão
"energia renovável" é usada apenas uma vez, e apenas sobre os países
"em desenvolvimento" ("África em particular")? Que
"biodiversidade" é usada apenas uma vez? Que o conceito de
"justiça climática" aparece apenas uma vez, como "importante
para alguns" - precisamente neste mesmo parágrafo que menciona a
biodiversidade e a importância ("para alguns" também!) Da Mãe Terra?
Essas lacunas não são fruto do acaso, mas a marca de um
projeto específico, uma estratégia de resposta capitalista para o desafio
climático. Os negacionistas do clima parecem estar a perderem atenção da própria
classe dominante, e tanto melhor que seja assim. No entanto, seria errado
considerar aliviado que o Acordo de Paris é um "sinal forte", que
"irá virar a página dos combustíveis fósseis" ou marcará o ponto de
viragem para uma "transição justa", como algumas pessoas têm dito .
Os responsáveis pelo desastre - setores de combustíveis fósseis e de crédito,
em termos gerais - ainda se seguram firme ao leme.
Um ponto de viragem,
mas qual?
Paris é um ponto de viragem? Provavelmente. Há provavelmente
consciência, nas mais altas esferas, do enorme e incalculável risco que o
aquecimento global representa para a sociedade, a sua coesão e sua economia, se
não for confrontado (a Encíclica do Papa Francisco é uma manifestação desse
fenômeno). É provável que alguns tomadores de decisão capitalistas queiram mais
do que usar essa COP como uma cortina de fumaça para esconder o desastre que
sua má gestão política tem produzido desde a Cúpula da Terra em 1992, que eles tentem
vencer o fosso entre as INDCs e o que é necessário para conter o aquecimento
abaixo de 2°C. Mas é muito improvável (e isto é um eufemismo) que eles venham a
ter sucesso: a sua sensibilização chegou muito tarde, o capital de combustíveis
fósseis tem seu pé no freio e o mundo multipolar é dilacerado por rivalidades
interimperialistas ferozes, sem clara liderança.
Além disso, o objetivo não é tudo, há também a forma. O
"cenário de menor custo para 2°C" que inspira os estrategistas é o
uso não só das "energias suaves", mas também da energia nuclear, da
queima de combustíveis fósseis com captura de sequestro de carbono, da gigante
hidroeletricidade e da combustão de biomassa com "recuperação de
carbono". O quinto relatório do IPCC é claro: sem isso, permanecendo abaixo
de 2°C "não é rentável", os custos explodem e os lucros são
ameaçados! Sacrilégio!
"Estado de emergência"? Que emergência pode ser maior do que a crise climática? |
Na parada de sucessos das tecnologias de aprendiz de
feiticeiro, a combustão de biomassa com a recuperação de carbono ganhou
posições (Bioenergia com captura e sequestro de carbono, ou BECCS). Os seus
apoiantes argumentam que a queima deste biomassa, através do armazenamento do
CO2 a partir desta combustão e cultivando uma nova biomassa para queima que vai
absorver o CO2 do ar, não só vai reduzir as emissões mas também reduzir o estoque
de CO2 acumulado na atmosfera. O raciocínio é impecável, mas o enorme consumo
de biomassa que esse projeto envolve só pode destruir tanto os ecossistemas e
as comunidades humanas que vivem lá. Compensações, destruição de biomassa e
armazenamento de carbono estão no coração do acordo de Paris. O texto anuncia um
amplo "mecanismo para o desenvolvimento sustentável". Ao lê-lo,
entendemos que ele vai simplesmente amplificar ao máximo o "mecanismo de
desenvolvimento limpo" do Protocolo de Quioto, através do qual as empresas
de automóveis europeus, em particular, "compensam" suas emissões, investindo
no Sul em projetos de "floresta" nas costas dos povos indígenas.
Essa é a "ambição realista" descrita por Hollande.
Essa é a verdadeira face do que alguns persistem saudando como a marcha em
direção a um "capitalismo verde". Vamos lidar com a realidade. O que
está sendo posto em prática em nome do "desenvolvimento sustentável"
é antiecológico e antissocial, não vai salvar o clima e vai exigir cada vez
mais repressão para quebrar a resistência e silenciar a dissidência. Decretado
sob o pretexto de combater o terrorismo, o Estado de emergência na França é, sob
qualquer perspectiva, muito revelador de certas tendências ocultas desta COP.
(Daniel Tanuro, agrônomo e militante ambientalista/ecossocialista, escreve para "La Gauche", revista mensal da LCR-SAP, seção belga da IV Internacional)
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