"O Clima é um bem comum", diz a encíclica "Laudato Si", de autoria do Papa Francisco. |
Chega a ser quase impossível proceder a uma análise mais detalhada do documento através de um único artigo, então este será apenas o primeiro de uma série. Aqui, neste primeiro, a preocupação maior está em mostrar como a encíclica está corretamente alinhada com a Ciência do Clima, não apenas nos aspectos mais "duros", isto é: na realidade do aquecimento global e de seu vínculo com as emissões humanas de gases de efeito estufa, mas também nas consequências socioambientais, analisadas também em estudos interdisciplinares, para além das bases físicas das mudanças climáticas, responsabilidade do "grupo de trabalho I" do IPCC, e que compõem o escopo da contribuição dos grupos II e III aos relatórios do Painel. Esse alinhamento, como veremos, confere uma força enorme ao documento papal, algo que, segundo alguns, pode ter sido facilitado pelo grau de Mestre em Química do Papa Francisco (sim, isso mesmo, ele é graduado e mestre em Química pela Universidade de Buenos Aires).
Eppur si muove! E não apenas ao redor do Sol e em torno do próprio eixo. A Terra tem movimentos sutis, com influência sobre o clima: variações na excentricidade da órbita e na inclinação do eixo e a precessão da própria órbita, processos conhecidos como os Ciclos de Milankovitch. |
A mesa de apresentação teve, além de Schellnhuber, um representante da Igreja Ortodoxa, o cardeal Peter Turkson (ganês que, salvo engano, fez declarações ruins concernentes à questão LGBT...) e Carolyn Woo, da Catholic Relief Services, organização católica de ajuda humanitária (a única a se colocar explicitamente com posições do "capitalismo verde", o que analisaremos em outra oportunidade). Schellhuber (em suas palavras, a "voz científica" naquele coral) afirmou, que "vivemos uma crise ambiental e social", mas que "não são os pobres os responsáveis pela degradação ambiental, e sim a riqueza e o consumo". Abrindo o espaço para o debate da dívida climática, mostrou o histórico das emissões (profundamente desiguais) entre os países e mostrou que, com base em dados atualizados da Oxfam, "60 pessoas se beneficiaram das emissões de CO2 tanto quanto 3,5 bilhões de pessoas". Devo dizer que há outros cientistas que têm chegado a conclusões ainda mais profundas e realmente mais definitivas quanto à incompatibilidade entre o capitalismo e a estabilidade climática, como é o caso de Kevin Anderson, do Centro Tyndall de Mudanças Climáticas, no Reino Unido, que afirma, sem rodeios, que "[h]oje, após duas décadas de blefes e mentiras, o restante do balanço [de carbono] para 2°C exige uma mudança revolucionária na hegemonia política e econômica", mas que aceitar a posição de Schellnhuber já é suficiente para se colocar em marcha mudanças radicais na sociedade, na economia e na política.
O perfeito alinhamento da encíclica, não apenas com a Ciência do Clima mas como com o entendimento que se tem hoje das várias dimensões da crise ecológica global e de como os modos de vida, produção e consumo vigente se opõem aos limites planetários, se percebe em diversos trechos, dos quais destacamos alguns.
"Fronteiras planetárias", que delimitam um "espaço seguro de navegação para a humanidade", segundo artigo publicado em 2009 na Revista Nature, de autoria de Röckstrom e colaboradores. |
Primeiro, o entendimento do sistema Terra como baseado numa teia extremamente complexa de interrelações e de que a aposta simplista em uma alternativa tecnológica salvadora ou num punhado delas é, na melhor das hipóteses, ingênua: "...[A] poluição (...) afeta a todos, causada pelo transporte, pelas emissões da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral. Na realidade a tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros."
Segundo, ao denunciar a insustentabilidade da produção capitalista como se estruturou e a incompatibilidade metabólica desta com a natureza que sustenta a sociedade humana, começando por constatar que "[se p]roduzem anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioativos" e que "a Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo", para concluir que "[e]stes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo". A crítica se conclui precisamente resgatando a ideia dos ciclos produtivos naturais, que são fechados: "[c]usta-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas naturais é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os". Este trecho é particularmente feliz, estabelecendo um paralelo equivalente à do conceito de metabolismo, como recuperada por Bellamy Foster, em seu "A Ecologia de Marx" e que é chave para a formulação de uma alternativa societária que não apenas evite as piores consequências do caos climático como nos reposicione como integrantes benignos de um sistema natural limitado, ao invés de interagir com o resto do tecido natural como células cancerígenas (que se alimentam e se replicam até conduzir o próprio sistema maior ao colapso)!
O peso do consenso na comunidade da Ciência do Clima é considerado explicitamente, como em "Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenómeno particular. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam." e "[n]umerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa (...) emitidos sobretudo por causa da atividade humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor (...) se dissipe no espaço. Isto é
particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola." E, indo além, a encíclica chega a considerar os riscos dos "feedbacks" ou retroalimentações climáticas, cujo entendimento é fundamental para se ter a exata noção de quão rápida e decisivamente precisamos zerar as emissões de carbono, bem como a mencionar a terrível prima-irmã do aquecimento global, a acidificação oceânica: "Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com uma liberação, de alto risco, de gás metano, e a decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de gás carbônico. A perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo gás carbônico aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha."
Consciente das causas do aquecimento global, o Papa não hesita em afirmar que "tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de gás carbônico e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável". É precisamente o que a Ciência do Clima, ao indicar claramente que a maior parte do carbono fóssil precisa permanecer intocado e que, portanto, o uso de petróleo, carvão e gás natural precisa ser limitado urgente e severamente, e abandonado no tempo mais breve possível.
Mas claro que há mais do que opções tecnológicas em jogo e o Papa Francisco, além de não tratar da crise climática como algo "técnico", também parece ter excelente grau de consciência acerca da gravidade (já atual e, pior, potencialmente futura) dos impactos das mudanças climáticas, impactos estes que, como já discutimos, são profundamente desiguais. Em suas palavras, "[s]e a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a elevação do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras." Ele não apenas percebe o quanto o risco climático é elevado, mas também como ele se volta, numa dupla injustiça, pois foram os ricos que se beneficiaram com a riqueza gerada e que teve as emissões de gases de efeito estufa como efeito colateral, contra os pobres e os refugiados ambientais e climáticos. E isso fica explícito na encíclica, como se vê nos trechos: "Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento, e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais." "É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa" e conclui pela "...impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza."
E é por isso que, em contraste com essa relação objetiva, da acumulação de riqueza no capitalismo que a tudo privatiza, mercantiliza e objetifica (pessoas, instituições, água, floresta, atmosfera...), com o caos climático de um lado e com a desigualdade do outro que Francisco apresenta, no início de sua carta, outra perspectiva de lidar com o mundo: "Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio."
Se olharmos somente para a Ciência, já teríamos argumentos de sobra para mudarmos radicalmente nosso modo de vida, produção e consumo. Se pensarmos bem, poucas coisas podem ser mais imperativas do que a destruição de algo incompatível matemática (impossibilidade do crescimento exponencial), física (aquecimento global), química (acidificação oceânica e desestabilização dos ciclos biogeoquímicos) e biologicamente (destruição do ecossistema global) com a própria continuidade da vida como ora se estrutura. A crise climática-ecológica global chega a ser um argumento quase infalível para se defender a morte definitiva do capital. Mas com outra visão de se relacionar com o mundo, "Galileo" ganha aí a companhia de "São Francisco de Assis" e um velho (mas incrivelmente atual) paradigma ético e moral acerca de como nos relacionarmos uns com os outros e com a natureza se coloca como ingrediente importante dessa transformação. Falta, é claro, adicionar ao contexto uma teoria/prática social e política renovada/reinventada para os estranhos dias de hoje, que nos traga elementos fundamentais de entendimento de como funciona a economia, de onde nasce a desigualdade, a quem serve o aparelho de Estado, que tipo de democracia se faz necessária e que potencialize ações reais de mudança. E acho que neste caso, Galileo e São Francisco não rejeitariam a companhia de mais um barbudo...
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