O asfalto escoa como líquido, o que é deixado claro por meio da deformação na sinalização horizontal. Fonte da foto: ABC. |
Mas o que aconteceu na Índia há alguns dias está longe de poder ser considerado "normal". Na maior parte do país, a temperatura máxima durante o dia (que, medida pelas estações meteorológicas, corresponde à temperatura do ar propriamente dita, à altura de 2 metros) excedeu 40°C, tendo chegado a mais de 45 graus em grandes extensões e ultrapassado os 47 em algumas localidades.
A onda de calor durou vários dias, tendo sido prolongada pelo atraso nas chuvas de monção. Ao todo, conforme dados do NCDC da NOAA, foram 43 recordes de temperatura quebrados em duas semanas (e mais 5 igualados). O resultado foi devastador. Os números são conflitantes, pois nem sempre é fácil atribuir corretamente a causa da morte, exceto nos casos de evidente hipertermia e desidratação extrema, mas estimativas variaram entre 1800 e 2500 pessoas mortas.
Meu questionamento é se "mortas" seria a palavra certa? Ou se seria melhor usar o termo "assassinadas"? Parece exagero, certo? Mas se soubéssemos que um evento como esse é uma consequência da ação humana? E que se pode atribuir dolo?
Bem, o fato é que de acordo com pesquisa recente, publicada na revista Nature Climate Change, os cientistas Erik Fischer e Reto Knutti, revelaram mais uma verdade bastante inconveniente para a indústria de combustíveis fósseis. Eles utilizaram técnicas de atribuição para examinar qual a fração dos eventos extremos que pode ser atribuída ao aquecimento global antrópico, isto é, que parte desses eventos é, em essência, artificial, produzido - e aí devemos colocar o dedo na ferida - não "pelo homem" em geral, mas em sua maioria pelas corporações responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa.
Curvas de razão de probabilidade (acima) e da fração de risco atribuído ao aquecimento global (abaixo), para extremos de precipitação (esquerda) e de alta temperatura (direita) no material suplementar ao artigo de Fischer e Knutti. |
E eis que os resultados impressionam. Segundo eles, cerca de 18% dos extremos diários de precipitação que, no presente, ocorrem sobre os continentes, já são causados pelo aquecimento global (que hoje já nos coloca 0,85°C acima da temperatura do período pré-industrial, na média sobre todo o planeta). Como uma atmosfera mais aquecida produzirá cada vez mais extremos, à medida em que prossiga a escalada do aquecimento global, essa percentagem só crescerá. A 2°C (o limite tratado como "seguro" pelos governos e pela ONU nas - pífias - negociações climáticas), essa fração já deverá ser de 40%. Vale dizer que essa tendência é ainda mais acentuada, considerando-se períodos de vários dias (de 5 dias a um mês): períodos extremamente chuvosos de 5 a 15 dias serão quase duas vezes mais prováveis a 2°C e de três a quatro vezes mais prováveis a 4°C. Sim, isso significa multiplicar os danos e prejuízos provocados por enchentes, deslizamentos, inundações, furacões e tufões por um fator de 3 a 4 vezes. Isso pode significar contar de 3 a 4 vezes mais mortes associadas a esse fenômeno do que contamos hoje.
O resumo da história é claro, sem margem para dúvida: a cada décimo de grau, mais pessoas adoecerão e morrerão em virtude de calor extremo. Nesse contexto, é preciso dizer claramente: a onda de calor na Índia dificilmente pode ser considerada um fenômeno puramente natural, ou mesmo majoritariamente natural; quase certamente não ocorreria não fosse o aquecimento global. Essas pessoas foram vítimas da fúria assassina das corporações de combustíveis fósseis e sua mão invisível, gasosa. A arma, o CO2.
Mulher. Idosa, negra, pobre. O retrato da tragédia do Katrina, que devastou New Orleans, atingindo principalmente as pessoas mais vulneráveis. |
Essas corporações deveriam ser responsabilizadas por pelo menos 3/4 dos cerca de 2000 indianos mortos. E contribuíram para matar 6300 filipinos, com o Haiyan, e 1833 estadunidenses, com o Katrina (quase todos negros/as e pobres da periferia de New Orleans). Em recente carta (que será objeto do próximo artigo em nosso blog) a Christiana Figueres, Secretária-Geral da Convenção-Quadro da ONU para as mudanças climáticas, algumas companhias do ramo petroquímico cinicamente admitiram que a crise climática existe e que "querem ser parte da solução". Mas isto é impossível, posto que elas são o problema. Mais do que encerrada, a indústria de combustíveis fósseis precisa ser tratada como é: uma criminosa fria e calculista.
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