Revista "Água para quem precisa: direito humano e suporte à vida". Disponível neste link. |
Este artigo foi publicado, junto com vários outros, de vários colegas do Ceará, na revista "Água para quem precisa: direito humano e suporte à vida", publicada por iniciativa dos mandatos do deputado estadual Renato Roseno e do vereador João Alfredo e disponibilizada através deste link.
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Introdução
Recentemente, o Brasil foi (e segue, apesar da estação
chuvosa) assolado por condições extremas de seca, com consequente crise de
abastecimento em numerosas cidades do Nordeste e do Sudeste. No início do mês
de março, o ministro da Integração Nacional, Gilberto Occhi, admitira como
“crítica” a situação dos reservatórios no Nordeste e no Sudeste. Nas palavras
do próprio Occhi, "identificamos 56 cidades que hoje estão em colapso,
sendo atendidas pelas prefeituras ou pelos governos estaduais. Nenhuma dessas é
atendida pelo governo federal, mas como a situação está se ampliando, o governo
federal pediu um levantamento e nós podemos chegar, dentro de uma avaliação, ao
número de 105 cidades que estão ou poderão estar em colapso”. O levantamento
daquele momento do ministério, para o Nordeste, indicava que os estados mais
atingidos eram, pela ordem de número de municípios em tais condições, Ceará
(23), Paraíba (15), Rio Grande do Norte (9), Bahia (5), Alagoas (2) e
Pernambuco (2), conforme informações do Portal G1 [1] e da página do Jornal do
Brasil na internet [2].
Mas a crise hídrica que o Brasil, não é um fenômeno isolado
e acontece neste exato momento ou se manifestou muito recentemente em várias partes
do mundo: na Califórnia, por exemplo, o quadro é de seca “extraordinária” em
metade do estado e os estoques de água declinaram ao ponto de serem suficientes
somente para mais um ano [3]. O risco de crises de abastecimento nas grandes
cidades de todo o planeta é hoje muito grande, graças uma conjunção de fatores
climáticos, ambientais, socioeconômicos e políticos. A crise hídrica se
manifesta, assim, como uma “hidra”, analogia que vale não apenas pelo aspecto
fonético, mas também pelo fato de essa criatura mitológica possuir várias
cabeças, como a crise hídrica, que é eminentemente multifacetada.
Neste artigo não pretendemos abordar esses múltiplos
aspectos, mas focaremos na relação direta entre o aquecimento global e o
aumento de risco de condições de seca.
Uma atmosfera com
febre sente sede
Em vários aspectos, o agravamento das secas é esperado, com
o aquecimento do sistema planetário (assim, como de todos os demais extremos,
incluindo enchentes, tempestades etc.). O mecanismo é relativamente simples e
tem a ver com a chamada equação de Clausius-Clapeyron que mostra um crescimento
exponencial da quantidade de vapor necessária para “saturar a atmosfera” (ou
seja, para iniciar a condensação e a formação de nuvens) em função da
temperatura.
Como consequência dessa relação física simples, é fato que a
quantidade absoluta de vapor d’água na atmosfera tem aumentado nas últimas
décadas, praticamente em consonância com o que se espera da própria lei de
Clausius-Clapeyron, isto é, um aumento de 7% na quantidade de vapor a cada grau
Celsius de elevação da temperatura média global.
Observações globais de umidade próximo à superfície têm
evidenciado esse fato, como mostrado na Figura 1 (IPCC, 2013) [3]. Em amplas
extensões do globo, dos anos 70 até o presente a tendência tem sido de aumento
de cerca de 0,1 g/kg (grama de vapor d’água por quilograma de ar) por década na
quantidade de vapor, o que é particularmente perceptível no Hemisfério Norte
(Figura 1a). No que diz respeito à média planetária, apesar de ficar clara a
sensibilidade dessa variável a processos de variabilidade natural (como a
ocorrência do El Niño recorde de 1998, que produziu um pico de umidade global),
a tendência de aumento da quantidade de vapor d’água na atmosfera também é
evidente (Figura 1b).
Mas é possível que a tendência geral de aumento da quantidade de vapor d’água na atmosfera em um determinado momento não acompanhe o crescimento da temperatura no ritmo previsto pela equação de Clausius-Clapeyron e que, ao mesmo tempo em que a umidade específica continue a crescer, a umidade relativa possa cair, especialmente sobre os continentes, onde as projeções de aumento de temperatura são maiores.
Com efeito, de acordo com a média do conjunto dos modelos do CMIP (Coupled Model Intercomparison Project), que subsidiam a elaboração dos relatórios do IPCC, a tendência é, em geral, para uma ligeira redução da umidade sobre os continentes em geral e sobre o continente sul-americano em particular, especialmente no chamado RCP8.5 (cenário de mais altas emissões, vide Figura 2).
A projeção do conjunto dos modelos do CMIP para
o cenário RCP8.5 também é de redução da cobertura de nuvens e da precipitação
média sobre amplas extensões continentais, incluindo a maior parte da América
do Sul, com exceção da Bacia do Prata e outras regiões menores (vide Figura 3, IPCC,
2013).
Isso pode trazer implicações bastante profundas sobre o ciclo hidrológico
sobre os continentes e impor desafios enormes para o gerenciamento de recursos
hídricos na maior parte das regiões tropicais e para o Brasil em particular. Às
mudanças esperadas na precipitação devem se somar variações importantes na
evaporação e evapotranspiração decorrentes do aumento de temperatura. Ao mesmo
tempo, espera-se uma mudança significativa na distribuição de eventos extremos.
A verdadeira “Era dos
Extremos” será a era dos extremos climáticos
Novamente com base na equação de Clausius-Clapeyron, é
possível deduzir que uma atmosfera mais quente funciona como um maior
“reservatório” de vapor d’água. O que temos, portanto, é que é necessário mais
vapor para “preenchê-lo”, o que demanda mais tempo e tende a prolongar,
portanto, os períodos de estiagem. Por outro lado, quando finalmente se chega à
saturação, as nuvens se formam a partir de uma quantidade maior de vapor d’água
e a tendência é que os eventos de precipitações também se tornem mais intensos.
Em resumo, secas mais longas e mais severas, menos eventos de chuva com chuva
mais intensa. Um planeta mais quente é um planeta de extremos.
Com efeito, um trabalho recentemente publicado (FISCHER E
KNUTTI, 2015) [4] aponta que cerca de 18% dos extremos de precipitação diária
sobre os continentes no presente já podem ser atribuídos ao aquecimento do
sistema planetário em relação à referência do clima pré-industrial (esse número
cresce para 75% quando se trata das ondas de calor). Segundo os mesmos autores,
em condições de um aquecimento global de 2°C, esse grau de atribuição deverá se
elevar para nada menos que 40%.
Na expectativa de aumento de temperatura nos cenários de
maiores emissões (4 a 5 graus sobre a maior parte da América do Sul), deve-se
assistir a um aumento ainda mais significativo da ocorrência desses fenômenos
extremos. É particularmente preocupante que a mudança nos padrões de precipitação
não apenas aponta no sentido de que as chuvas se concentrem em poucos eventos
com grande precipitação concentrada, mas também que se aponte para uma
tendência de prolongamento dos períodos secos. O número de dias consecutivos
sem chuva deve crescer significativamente em vastas áreas continentais nos
trópicos e subtrópicos, incluindo quase todo o território brasileiro,
especialmente no cenário de maiores emissões (IPCC, 2013), como mostrado na
Figura 4.
Reduzir globalmente
as emissões, construir localmente resiliência
Insistimos que é preciso investir em duas frentes, mas a
maioria dos governos tem até agora ignorado solenemente a comunidade
científica.
A primeira delas é a frente da “adaptação”, isto é, de
ajustes para melhor enfrentarmos os efeitos que porventura já sejam
inevitáveis, como é o caso do que já assistimos hoje. Especificamente no que
diz respeito à política de recursos hídricos, seria necessário uma ampla
reformulação desta, para evitar um colapso do abastecimento em diversas regiões
do mundo e, particularmente, do Brasil. Além de melhorar o sistema de
armazenamento e distribuição, é preciso mexer na demanda. De norte a sul do
nosso País, o que se vê é que o agronegócio e indústrias pesadas (siderúrgicas,
refinarias), a geração de energia (termelétricas consomem bastante água), a
mineração etc. são consumidores vorazes de água. Uma única usina termelétrica a
carvão pode consumir até 1000 litros de água por segundo, suficiente para
abastecer uma cidade quase do tamanho de São José dos Campos. Um quilo de carne
bovina demanda 15 mil litros de água em sua produção e uma tonelada de aço
requer 280 mil litros. É preciso abrir a caixa-preta da água em todos os
estados para que as pessoas decidam sobre o uso dela e sobre que modelo de
desenvolvimento, que opções de industrialização etc.
Segundo, é preciso apostar seriamente, de uma vez por todas,
na outra frente: a da “mitigação”, isto é, na redução – urgente – das emissões
de gases de efeito estufa. Até porque, a partir de um determinado momento não
há como se adaptar. A partir de um determinado ponto, a crise climática pode se
tornar irreversível.
Existem evidências cientificas de que o limiar seguro de
concentrações de CO2 na atmosfera seria de 350 ppm, o que foi
ultrapassado em 1988. Hoje, flertamos com 400 ppm (ficamos acima desse valor
por 3 meses em 2014). A maioria da comunidade cientifica entende que o limiar
de 2 graus Celsius de aquecimento é aquele que não deve em hipótese alguma ser
ultrapassado, sob pena de arruinarmos um sem número de biomas terrestres e
acelerar o aquecimento com a liberação dos estoques naturais de metano
(clatratos do piso oceânico e derretimento do permafrost), derretimento das geleiras e saturação da capacidade
dos oceanos e florestas em sequestrar carbono.
Isso só pode ser feito mediante um corte acelerado nas
emissões, com uma transição energética rápida e uma mudança no paradigma de
transportes que promova em poucas décadas o abandono dos combustíveis fósseis.
Referências:
[1] MINISTRO diz que 56 cidades do Nordeste estão em
'colapso' hídrico. G1, 01 abr. 2015.
Política. Disponível em <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/04/ministro-diz-que-100-cidades-no-ne-estao-em-colapso-hidrico.html>.
Acesso em 15 abr. 2015.
[2] MAIS de 50 cidades do Nordeste vivem colapso hídrico,
diz ministro da Integração. Jornal do
Brasil, 01 abr. 2015. País. Disponível em <http://www.jb.com.br/pais/noticias/2015/04/01/mais-de-50-cidades-do-nordeste-vivem-colapso-hidrico-diz-ministro-da-integracao/?from_rss=cultura>.
Acesso em 15 abr. 2015.
[3] IPCC (2013): Climate Change 2013: The Physical Science
Basis. Disponível em http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg1/
É possível adquirir essa revista em PDF? Gostaria de usa-los em meu Trabalho de TCC, se possível me envie david.bm.tavares@gmail.com
ResponderExcluirGrato