Há limites muito estritos para a adaptação às mudanças climáticas. Por que, então, alguns segmentos têm insistido em falar mais de uma adaptação impossível do que da mitigação necessária? |
Nesse contexto, o uso cada vez mais instrumentalizado do termo "adaptação" no discurso acerca do que fazer face as mudanças climáticas tem-me levado a procurar refletir mais profundamente sobre seu significado no contexto de um capitalismo global, irrefreado, predatório em essência e oposto à diversidade ecológica, biológica, étnica e cultural. E mesmo se essa palavra, sempre tida como a cara-metade, a complementaridade da "mitigação", deve realmente seguir em uso, em meio aos que combatem a mudança climática.
Explico: consciente ou inconscientemente me parece que a "adaptação" é hoje empunhada como
bandeira, por setores do movimento ambientalista, pelos cientistas e mesmo por parte dos gestores melhor intencionados, numa espécie de conformismo ou rendição (dizendo que "é preciso adaptar-se ao que for inevitável em termos de mudanças climáticas", mas incluindo boa parte do "evitável" na conta do "inevitável"). Por outro lado, vindo de outros segmentos, ela parece vir como salvaguarda do sistema, para esconder que somente medidas muitíssimo radicais são capazes de evitar impactos que, sem exagero, podem ser caracterizados de catastróficos não apenas à sociedade humana, mas para ampla porção da teia de vida planetária. É a bandeira da "adaptação" servindo para dourar a pílula e para desviar o foco central da mitigação. Uma extinção acelerada da matriz fóssil já é necessária e isto implica em enviar para o museu o espetacular mundo da hiperprodução e hiperconsumo e sua demanda insustentável de matéria-prima e energia para os processos produtivos, que já compromete o metabolismo do sistema Terra, as suas trocas e fluxos. Reajustar nossa sociedade, nossa matriz energética e nossa base produtiva a esse metabolismo: eis a "adaptação" necessária!
A verdadeira "adaptação" a ser defendida hoje é uma só: a da sociedade humana aos ciclos naturais e fluxos de matéria e energia do Sistema Terra. |
Nesse sentido, cada vez menos, em virtude de sua apropriação pela lógica do capital, parece haver "complementaridade" entre adaptação e mitigação. Pelo contrário, cada vez mais a ênfase na primeira parece emergir como uma fuga da segunda. No limite, cada vez mais a não-mitigação torna "inevitáveis" consequências cada vez mais graves e catastróficas do aquecimento do Sistema Terra. E o discurso de "adaptar-se ao que é inevitável" se esgotará na própria inadaptabilidade ao que será, sob o paradigma vigente, inevitável. Mesmo numa perspectiva antropocêntrica (como se fosse possível ignorar as centenas de milhares ou milhões de espécies incapazes de se adaptar - por mudanças no seu pool genético, migração, alterações nas interações ecossistêmicas etc. - a mudanças já em curso), que adaptação pode haver ao que já se vislumbra num horizonte de algumas décadas para diversos contingentes humanos?
Em nome da "adaptação" como bandeira, o que considero mais provável é que o inadaptável emerja como o inevitável. Empurrar as políticas duras, urgentes e necessárias de corte profundo nas emissões de gases de efeito estufa para depois a fim de salvaguardar a "economia" (ou melhor, o capital) é uma forma sui generis de suicídio coletivo (e também, claro, de suicídio). Equivale, ao meu ver, àquele que chega a beira de um precipício mas, por não querer "comprometer a caminhada", acredita que se adaptará à consequência do passo em frente.
Devemos acrescentar que adaptar-se aos cenários de grandes emissões é também virtualmente impossível, dado que as mudanças projetadas nesses casos são aceleradas e não tendem a um estado estacionário, isto é, uma nova condição de estabilidade à qual seja possível uma adaptação. Mais do que isso é preciso reconhecer que as incertezas quanto aos desdobramentos das mudanças climáticas são mais imprevisíveis precisamente nos cenários de maiores emissões. Adaptar-se implica em preparar, com antecedência, o enfrentamento a determinadas circunstâncias (problemas de abastecimento de água, dificuldade de manter determinadas culturas agrícolas, deslocamento de comunidades por conta da elevação do nível do mar etc.). Mas até para que algum tipo de planejamento seja possível, conter a crise climática já, cortando emissões, é a única alternativa existente!
Também é inútil achar que apresentar a crise climática em cores mais brandas isso possa mobilizar sociedade e governos. Quando são mostrados os dados de realidade, a velocidade das transformações, os riscos brutais, a alcunha de catastrofismo e alarmismo aparece de imediato, é verdade. Mas ao se atenuar o discurso, ao se conciliar com a "adaptação", ao se assumir uma postura conivente com o "não é tão grave assim", a paralisia não apenas permanece (afinal outras prioridades são imediatamente eleitas) como se perde algo fundamental, e que é o fio de esperança, que é a coerência, a persistência, a clareza na crítica à crise climática como produto inerente do crescimento capitalista montado na mula-sem-cabeça fóssil. O "subnegacionismo" é uma capitulação vergonhosa e inadmissível.
Vivemos num tempo absolutamente acelerado e em que transformações urgentes, rápidas, profundas em nossa sociedade precisam ser operadas. Do contrário, transformações involuntárias e indesejadas serão impostas à nossa sociedade pela incapacidade de esta se sustentar, tal como a conhecemos, em meio a um planeta de temperaturas escorchantes, com eventos extremos de secas e tempestades, com um ecossistema global arruinado. Na ampulheta, os últimos grãos de areia se esvaem, deixando a parte de cima. Só há uma maneira de ganharmos tempo, ou melhor de conquistarmos condições para que a aventura humana continue sem ser brutalmente interrompida por uma catástrofe ecológica global: virá-la de cabeça para baixo!
Excelente artigo. A imagem da ampulheta está corretíssima. O sistema vida só será preservado, se fizermos radical correção de rota. Continuar na mesma direção seria dar mais um passo, quando já estamos à beira do abismo.
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