A equação é simples: a pegada de carbono está fortemente correlacionada com a renda e o consumo. Os ricos, menos vulneráveis, são os que mais emitem. |
Um dos fatores que leva à paralisia é a evidente desigualdade entre beneficiários das emissões de gases de efeito estufa e os mais atingidos pelos impactos das mudanças climáticas. No que diz respeito aos Estados nacionais, os dois conjuntos (maiores beneficiários versus principais atingidos) contêm interseções, claro, mas a regra é o contrário, isto é, em geral, os países que estão na linha de frente do risco climático estão longe de ser os que mais geraram e acumularam riqueza propulsionados pela queima de carvão e petróleo.
A divisão entre países, aliás, é algo que reflete, dentro de cada um deles, a segregação de classe, o profundo fosso social que separa os muitíssimo ricos da gigantesca massa de pobres em escala global e dentro de cada país; entre o 1% das pessoas mais abastadas, cuja riqueza é 65 vezes maior do que a de 3,5 bilhões de pessoas e especialmente, dentre aquelas, das 85 pessoas cujo patrimônio se iguala ao da metade mais pobre da população mundial, segundo dados da Oxfam. Enquanto os pobres pouco emitem (no caso de comunidades tradicionais e povos indígenas as emissões líquidas se aproximam de zero), os ricos possuem uma "pegada de carbono" per capita muito grande e mesmo sem considerar o fato de que vários são proprietários ou sócios em companhias de setores econômicos associados a grandes emissões (indústrias fóssil e automobilística, mineração, agronegócio, produção de cimento etc,), tal pegada se expressa muito bem no padrão individual de consumo e no estilo de vida (uso de automóveis com motores de grande cilindrada, viagens aéreas frequentes, consumo muito elevado de bens industrializados, vários produzidos às custas da queima de carvão em termelétricas chinesas e até mesmo consumo de alimentos com maior impacto em termos de emissões, como carne bovina ou comida importada, que responde por parcela nada desprezível das emissões de transporte de carga).
A China é o principal exportador de bens industrializados em escala mundial e o que é contabilizado como uma "emissão chinesa" está, na verdade, associado ao consumo de algum desses bens em outro país, especialmente nos EUA e nos países mais ricos da Europa. De acordo com o gráfico, nada menos que 395 milhões de toneladas de carbono foram emitidos anualmente (em 2004) pela China só para os EUA (fonte: Davis and Caldera, 2010). Além disso, mais de 30% das "emissões de consumo" de países como Reino Unido, França, Áustria e Suíça foram importados. |
Do ponto de vista das emissões per capita de CO2, considerando a taxa anual do presente, o Qatar aparece como aquele que mais emite por habitante (40,4 toneladas de CO2 por habitante por ano, de acordo com o WRI). O ex-protetorado britânico, que se tornou independente há meros 33 anos, conta com uma população de apenas 2,168 milhões de pessoas (em 2013, segundo o Banco Mundial), é detentor daquilo que se estima ser a terceira maior reserva de gás natural e petróleo (25 bilhões de barris) e é um dos países com maior PIB per capita (também de acordo com o Banco Mundial, pulou 12 posições no ranking dessa variável em apenas uma década e em 2012 assumiu a terceira posição, logo atrás de Luxemburgo e Noruega). O site do Banco Mundial não apresenta dados do índice GINI (que nos ofereceria uma informação quantitativa), mas sabe-se que é também um local de grande concentração de riqueza e um dos piores locais do planeta para se trabalhar, segundo informações da International Trade Union Confederation.
Mas o que é mais importante nessa discussão toda não é, evidentemente, "livrar a cara da China", como seus próprios dirigentes, em acordo com a cúpula do governo dos EUA, tentam fazer, vide o questionável "acordo bilateral", celebrado às vésperas da COP-20. O mais importante é estabelecer, como dito antes, o contraste entre os grandes emissores (atuais e históricos) que são principalmente os ricos dos países ricos e as pequenas emissões dos países mais afetados por calamidades que, segundo várias evidências, estão se agravando em função do aquecimento do sistema climático terrestre, como secas, enchentes, tempestades violentas e ciclones tropicais (furacões e tufões).
Durante a COP-20, como já vem ficando de praxe, as Filipinas foram violentamente atingidas pelo tufão Hagupit, que levou ao deslocamento de mais de meio milhão de pessoas de suas casas, um ano após o Haiyan ter devastado cidades inteiras (como Tacloban) e matado mais de 6000 pessoas. E de fato, segundo a Germanwatch, em 2013, as Filipinas, o Cambodja e a Índia lideraram a lista de países atingidos por eventos extremos. O relatório completo da Germanwatch indica, por sinal, a lista de países mais afetados nas duas últimas duas décadas, indicada abaixo, tendo eu acrescentado os dados do WRI para emissões e emissões per capita.
CRI = Índice de Risco Climático (quanto menor, mais vulnerável é o País à ocorrência de eventos extremos) |
dados do Fundo Monetário Internacional para 2013, o PIB per capita de 9 dos 10 países listados (não havia dados sobre Myanmar) não deixa dúvidas quanto às suas condições: U$ 2.323 para Honduras (127ª posição no ranking de 183 países), U$ 819 para o Haiti (159ª posição), U$ 1.839 para a Nicarágua (134ª posição), U$ 2.790 para as Filipinas (124ª posição), U$ 903 para Bangladesh (157ª posição), U$ 1.901 para o Vietnã (132ª posição), U$ 5.834 para a República Dominicana (o único país melhor acima do centésimo PIB per capita mundial, na 91ª posição, mas ainda muito abaixo do PIB per capita mundial de U$ 10.486), U$ 3.512 para a Guatemala (114ª posição) e U$ 1.307 para a Guatemala (143ª posição). Em resumo, países pobres: muito menos responsabilidade histórica, muito menos usufruto da riqueza em associação com as emissões de CO2 e outros gases e muito mais vulnerabilidade à mudança climática.
O conceito de justiça climática precisa estar presente ao discutirmos saídas, cada vez mais difíceis (mas ao mesmo tempo cada vez mais imprescindíveis), para a crise climática. Ela requer responsabilidades e investimentos diferenciados, redução acelerada e radical da desigualdade nacional e de classe, abandono das fontes fósseis como base da geração energética, contenção da hiperprodução e hipersonsumo, fim de restrições de patentes que obstaculizem a ampla difusão de tecnologias de mitigação, proteção dos mais frágeis, transição energética acelerada nos países ricos, apoio material, humano e financeiro para que os países mais pobres preservem seus estoques de carbono e tenham acesso a um desenvolvimento baseado noutro modelo. Contrabalançar a contradição que verificamos entre quem se beneficiou das emissões (os ricos) e quem é mais vulnerável às consequências deletérias e cada vez mais catastróficas dessas emissões sobre o clima (os pobres) requer um esforço coordenado mundial e uma postura responsável por parte dos países mais desenvolvidos, numa lógica que teria de confrontar, necessariamente, com os interesses da grandes corporações, particularmente as dos setores petroquímico, energético, automobilístico, agropecuário etc. Mas infelizmente a história que temos para contar não segue esse rumo.
As conclusões do Relatório "Price of Oil" são eloquentes, gritantes diria. Ele compara o que está sendo destinado ao "Fundo Verde do Clima", ou Green Climate Fund (GCF), que se espera que movimente até o ano 2020, 100 bilhões de dólares em financiamento anual para fins de adaptação e mitigação em países em desenvolvimento. O que o relatório mostra, porém é que os gastos com apoio à indústria fóssil são muito maiores do que essa cifra.
Somente para a busca por novas jazidas de petróleo, carvão e gás, os países desenvolvidos aplicam quase 3 vezes o que é colocado para proteção climática. Enquanto o GCF havia recebido até Dezembro de 2014 um total de 9,95 bilhões de dólares, o suporte público à exploração de jazidas fósseis por parte dos países do chamado "Anexo 2" da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima somou nada menos que 26,6 bilhões de dólares (167% a mais). Em outras palavras, aqueles países industrializados responsáveis por destinar recursos financeiros às ações voluntárias de mitigação e adaptação nos países em desenvolvimento e promoverem a transferência de tecnologias para sustentabilidade, continuam colocando muito mais peso no prato da balança da crise climática do que no da sua solução!
O que dizer então quando constatamos que esse investimento existe e, no caso de países como a Austrália, a Áustria e a Bélgica, nenhum centavo sequer foi destinado ao GCF? O que dizer quando se constata que os EUA, entre subsídios públicos e investimentos públicos diretos, joga nada menos do que 6,5 bilhões de dólares por ano nessa atividade que deveria ser banida e que toda a encenação de Obama não esconde a dura realidade de que os subsídios aos combustíveis fósseis cresceram em 45% desde 2009? Quando a Holanda, país-sede (ao lado do Reino Unido) da Shell, aplica U$ 4,9 bilhões no desastre climático, enquanto repassa míseros U$ 124 milhões (40 vezes menos!) para o GCF? Quando mesmo a Alemanha, único país do Anexo 2 a destinar mais recursos ao fundo climático do que à pobre coitadinha indústria fóssil ainda assim entrega quase meio bilhão de dólares de dinheiro público nas mãos dela todo ano?
texto anterior, ocupam a maior parte das posições de cima no ranking de maiores empresas em faturamento (nada menos do que 7 das 11). Segundo a Forbes, só a Gazprom russa obteve um lucro líquido de U$ 38,97 bilhões em um ano (o 4º maior lucro líquido dentre todas as companhias do mundo), ou seja, 4 vezes o destinado ao GCF por todos os países! Ainda que a crise climática não existisse, já seria por si só uma contradição aberrante o fato de os defensores do "deus-mercado" apelarem tão frequentemente para uma "forcinha" do aparato estatal, especialmente quando esse setor econômico tem tanta bala na agulha para ele mesmo cuidar dos investimentos que lhe interessassem... Mas não é assim, longe disso! Não apenas a crise climática existe como é o maior impasse a impor soluções para os próximos anos, a fim de que as chances de evitarmos consequências catastróficas não se tornem exíguas. Nesse contexto, o poder público (fica clara a necessidade de outro poder público que não o estabelecido, aliás) teria a obrigação de impedir a indústria fóssil de realizar qualquer prospecção em busca de novas jazidas fósseis, tirar-lhe o controle das jazidas já existentes e obrigá-la a respeitar o "orçamento para dois graus" ao invés de subsidiar-lhe a farra e o carnaval. Do contrário, não haverá meios de conter a fome total, a sede total, a perda de bens materiais e vidas nas secas, enchentes e tufões. Ó mundo tão desigual...
Nenhum comentário:
Postar um comentário