sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

2014: Uma Odisseia na Estufa

Nas mãos de Arthur C. Clarke, 2001 e 2010 já foram sinônimos de ficção científica, anos popularizados através dos filmes da "Odisseia no Espaço". Qualquer data além disso poderia ser objeto de especulações acerca de um futuro em que a tecnologia pudesse proporcionar conquistas formidáveis ou, pelo menos, como no bem menos pretensioso "De Volta para o Futuro", o uso cotidiano de tênis que se ajustam sozinhos ou skates voadores.

Mesmo fora do terreno da ficção, mas na seara das projeções para o futuro, 2014, antes de virar passado, provavelmente já foi vislumbrado, há algumas poucas décadas, como o ano em que se teria encontrado a cura definitiva para o câncer ou a AIDS, erradicado o analfabetismo em escala mundial, enviado a primeira missão tripulada a Marte, abolido definitivamente as armas nucleares ou debelado a fome, os conflitos territoriais, étnicos e religiosos. Era um tempo em que a ficção e até mesmo análises da realidade aparentemente coerentes tendiam a projetar mais avanços e menos cenários distópicos. Estes foram se tornando cada vez mais frequentes, de Mad Max a Wall-E; de Matrix ao interessantíssimo "Uma História de Amor e Fúria", apenas para citar alguns exemplos.

O NOVO RECORDE DE TEMPERATURA GLOBAL

Eis que 2014 chegou e ao contrário da solução de algum grande problema da humanidade, ele trouxe o traço simbólico da incapacidade de resolução do maior deles. Consolidados os dados, como já se esperava nos últimos meses, está confirmado: 2014 é o ano mais quente de todo o registro histórico de temperatura global, iniciado em 1880.

Segundo o site da National Oceanic and Atmospheric Administration, a NOAA, 2014 ficou 0,69°C acima da média do século XX, ultrapassando com uma relativa folga os anos de 2010 e 2005 (que estavam empatados no topo, com uma anomalia de temperatura de 0,65°C em relação à média do século anterior). Na lista dos dez anos mais quentes, por sinal, 1998 segue sendo o único remanescente dos anos do século que se encerrou, mas a partir de agora fora do "pódio", seguido de 2013, 2003, 2002, 2006, 2009 e 2007, nesta ordem.

A quebra de recorde se deveu principalmente à elevada temperatura dos oceanos (sobre os continentes, 2014 foi o 4º ano mais quente). Após um período em que prevaleceram eventos de La Niña (em que o Pacífico equatorial se apresenta mais frio do que o normal), bastou o vai-e-vem, chove-e-não-molha de um El Niño que não chegou a se configurar plenamente, aliado a temperaturas oceânicas anomalamente altas em outras áreas (como o Índico e o Pacífico norte) para que 2014 estabelecesse novo recorde. Globalmente, os oceanos estiveram 0,57°C acima da média do século XX (0,65°C no Hemisfério Norte), algo que só se esperava com o retorno do El Niño que, aliás, é a razão pela qual 1998 teima em permanecer entre anos não iniciados em "1", afinal foi naquele ano em que ocorreu o maior evento de El Niño de que se tem notícia.

PAUSA? QUE PAUSA?

Pausa? Onde? A figura mostra as temperaturas médias por
década, de 1850 a 2010, incluindo incertezas. A última década
foi a mais quente dentre todas, não havendo indício de "pausa"
no aquecimento do sistema terrestre.
O novo recorde de temperatura coloca uma ducha de água fria... ops, de água quente em uma das últimas mais irritantes e recorrentes baboseiras negacionistas: de que o aquecimento global teria "parado em 1998" ou, na versão "light", que contou com a infeliz condescendência até de setores da comunidade científica séria, de que estaria havendo uma "pausa" no aquecimento do sistema climático.

As variações de ano para ano e mesmo em períodos de tempo inferiores a duas décadas não podem ser tomadas em separado da "big picture", mostrada no gráfico ao lado que evidencia, do último terço do século XX aos dias de hoje, que cada década foi mais quente do que a que lhe antecedeu e que mesmo a suposta "pausa" (em que o desequilíbrio energético permaneceu existindo e em que o calor acumulou-se em outras componentes do sistema climático) entre as décadas de 1950 e 1980 em momento algum indicou que o aquecimento global deixou de existir.

Manipulando os dados e as informações,
negacionistas poderiam identificar vários
períodos de "pausa" ou mesmo de "resfria-
mento" no registro histórico de temperatura
O site Skeptical Science demonstrou bem o problema de olhar apenas para "pedaços" do gráfico de temperatura, procedimento desonesto através do qual seria possível identificar várias "pausas" no aquecimento global somente nos últimos 40 anos! Na figura ao lado, as linhas azuis chegariam mesmo a representar momentos de "resfriamento global", o tipo de sandice que os negacionistas mais histéricos chegam mesmo a propagandear com frequência! Mas não deve haver dúvidas, na figura seguinte (abaixo), para qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e honestidade intelectual, que a tendência de aquecimento é para lá de clara! Essa tendência, aliás, acaba de ser reforçada com um ponto que não consta ainda nesses gráficos: o de 2014, claro.

Bom senso e honestidade. É o que basta
para perceber o aquecimento inequívoco
do sistema climático nas últimas 4 décadas
e a incoerência dos que falam em "pausa".
Quem explica muito bem o papel dessas variações de curto prazo e como a cantilena negacionista não passa de uma tentativa de gerar confusão é ninguém menos que Niel deGrasse Tyson, herdeiro de Carl Sagan na reedição do seriado Cosmos (bem produzido, instrutivo e inspirador). No recorte de um dos episódios da série, deGrasse Tyson passeia na praia com um cachorrinho. Ao mesmo tempo em que Neil segue lentamente, por uma trajetória "bem comportada", quase retilínea em alguns momentos, a sua companhia canina, movendo-se com bastante excitação, vai para um lado e para o outro. deGrasse Tyson é o clima. O cachorrinho é o tempo. Ou se preferirem, em nosso caso, Neil é a mudança climática de longo prazo. O cachorrinho representa as variações de ano a ano, influenciadas pelos modos de oscilação interanuais e decadais, incluindo a alternância de El Niños e La Niñas.

Chega de cachorrada! As evidências científicas estão aí,
disponíveis para todo mundo. Por mais que alguns negacionistas
possam ter um discurso sedutor, um mínimo de aprofundamento
é suficiente para mostrar que nele nada existe de científico. Há
apenas desonestidade, vaidade e/ou subordinação a interesses
políticos e econômicos escusos. 
Aliás, se quisermos, poderíamos introduzir outra analogia... A trajetória de Neil deGrasse Tyson (mostrada na figura ao lado) é o trabalho consistente da comunidade de cientistas do clima, usando múltiplas linhas de evidência, calcando suas conclusões nas observações do sistema climático e no que se conhece de outros ramos da ciência (incluindo a interação dos gases de efeito estufa com a radiação infravermelho). As oscilações para lá e para cá são o discurso inconsistente e desprovido de coerência científica apresentado pelos negacionistas. Como no vídeo, melhor seguir o homem do que o cachorro.

2014: MAIS UM ANO DE EXTREMOS!

É marcante também que 2014 tenha sido palco de uma sucessão de eventos extremos (mesmo não tendo sido o ano mais quente sobre as regiões continentais em seu todo). No que diz respeito a calor extremo, Inglaterra, França, Alemanha, Dinamarca, Áustria e Suíça anunciaram recordes absolutos de temperatura. O caso inglês é emblemático, pois seu registro histórico, o mais antigo de todos, se iniciou ainda no século XVII (1659 para ser mais exato)! Ondas de calor varreram Tunísia, Marrocos, África do Sul, Austrália. Na Argentina, os 3 anos mais quentes do registro daquele País foram exatamente os 3 últimos (2012, 2013 e 2014).

Longe de ser exceção, a crise de abastecimento em São Paulo
(claro, agravada pela privatização e pelo atendimento a deman-
das insustentáveis do agronegócio e indústria) é uma das várias
manifestações, ocorridas em 2014, do que secas severas, espe-
radas num clima mais quente, poderão trazer para as grandes
cidades no futuro.
Ainda segundo o relatório da NOAA, foram várias as regiões que apresentaram secas extremas. Houve recordes no sudeste da Rússia, o leste da China, o sul do Paquistão, o sudeste da Espanha, o oeste da Venezuela e o noroeste da África do Sul. Situações críticas como as de Queensland, na Austrália, do sudeste e nordeste brasileiros e da Califórnia se agravaram. Em algumas dessas localidades, apareceu uma amostra do que poderão ser as grandes crises hídricas de um futuro nada distante. Em contrapartida, também houve vários locais com cheias extremas: Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Romênia, Bulgária, Eslováquia, Turquia, Rússia, Japão, Marrocos, Paquistão, Índia... E, claro, não poderia faltar um tufão de grande intensidade sobre as Filipinas, o Hagopit.

Famosa cena de Odisseia no Espaço. Não queremos que, sem
os pelos, ela se repita nesta "Odisseia na Estufa".
A ocorrência desses eventos extremos impõe dificuldades grandes especialmente a países e
comunidades vulneráveis. Antes de se recuperar de um evento, outro já se abate sobre a mesma população. E nesse ritmo, aprofundando a desigualdade, os cenários utópicos que apareciam em algumas obras de ficção parecem cada vez mais elusivos, mais fugidios. Seus opostos, os cenários de outras obras de ficção, com paisagens desérticas ubíquas, guerras e revoluções pela água, etc. lamentavelmente parecem ser um desfecho bem mais realista da opção por não mitigar as mudanças climáticas, reduzindo drasticamente as emissões de gases CO2, metano, óxido nitroso e clorofluorocarbonetos. Reescrever as páginas da "Odisseia na Estufa" é a única maneira para que a jornada humana não se encerre num fracasso homérico.

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