Fulano não está se sentindo bem, com sintomas de cansaço, pressão alta, etc. Vai a um médico e este diz: "Você está com problemas respiratórios e cardíacos. Você fuma?" Ao receber a confirmação, o médico, ainda cauteloso, faz alguns exames e conclui: "Provavelmente a causa desses problemas é o cigarro, mas ainda são reversíveis. Basta que você pare de fumar."
Não satisfeito, Fulano procura outro médico, e outro, e mais outro. A ampla maioria dos médicos afirma a mesma coisa, isto é, que é "extremamente provável" (alguns dizem, é "praticamente certo") que o problema esteja ficando sério e que a maneira mais segura de se preservar para males ainda piores seria parar de fumar.
composição de uma junta médica. Essa junta debate entre si, faz levantamento da literatura a respeito do assunto, troca dados e informações, checa novos exames e conclui claramente que não há outra razão possível para os referidos problemas cárdio-respiratórios - agora mais evidentes do que antes - que não o cigarro. A junta faz não apenas uma, mas várias reuniões, sempre diante de exames mais recentes e dados novos, que evidenciam que o estado do paciente só tende a piorar e a resposta é sempre a mesma ("Você tem de parar de fumar!"). Uma consulta feita entre os outros médicos especialistas atesta ainda que 97% concorda com o que a Junta afirmou.
Claro que ao aventar, após tanta teimosia, largar o vício pelo tabaco, Fulano incomodou alguns, particularmente o dono do estabelecimento comercial de onde era freguês assíduo e onde, por muitos anos, vinha comprando seus maços de cigarro, em quantidades cada vez maiores! Não querendo perder a fonte de dinheiro, a solução é acionar um amigo médico de "pouca ética" (sendo bastante eufemista) para "colar" no freguês e tentar dissuadi-lo da idéia de mudar seu estilo de vida.
Quando os médicos dizem "pare de fumar e comece a fazer exercícios", você acredita que isso faz parte de uma "conspiração global" deles com as academias de ginástica? |
Pouco importava que o tal médico pilantra, que fazia aquilo por um misto de prazer sádico e pelos trocados do comerciante, não tivesse um currículo bom. Pouco importava que ele nunca tenha tido uma carreira de grandes méritos na Medicina. Ele dizia o que o paciente queria ouvir, isto é, que estava tudo bem (ainda que o colesterol estivesse alto e que os episódios de pressão alta estivessem ficando cada vez mais frequentes e intensos); que não precisaria abrir mão dos prazeres do tabagismo! Fulano já estava acreditando até que 97% dos médicos (principalmente os da Junta que o examinava constantemente) tinham algum tipo de conluio com o dono da academia de ginástica (que dizia que ele Fulano iria se viciar em esteira e que nem sentiria falta do cigarrinho), ou quem sabe com o vendedor de bicicletas! Claro, era uma conspiração, da qual participaria também aquela vizinha que dizia que se ele parasse de fumar, desapareceria aquele cheiro de fumaça de cigarro e até os dentes e as unhas não ficariam feios e amarelados... "Bobagem a pessoa se preocupar com esse tipo de detalhe, não?", pensava Fulano. "Estético-chata", resmungava...
Sim, Fulano é um tolo, mas sobretudo um teimoso. Adora o autoengano e é por isso que aceita tão facilmente todo o besteirol dito pelo médico pilantra e seu comparsa. Prefere acreditar que 97% dos médicos agem de má fé e que só querem que ele gaste mais dinheiro com consultas (sem perceber que, se aceitasse o diagnóstico óbvio e se tratasse, não precisaria fazer visitas médicas frequentes a não ser as de rotina).
O problema é que o Fulano é você. Ou melhor, Fulano somos todos nós. Fulano é uma humanidade que prefere permanecer mergulhada na ignorância e reverberar nonsense, negando um risco tão evidente e tão bem conhecido por especialistas.
Acreditem. Já fui fumante passivo no interior de uma aeronave. E a proibição poderia e deveria ter surgido pelo menos duas décadas antes do que se viu! |
Voltando à nossa analogia individual, porém, tenho certeza de que se você visse toda a situação de fora e se importasse apenas um pouquinho com Fulano (quiçá como uma civilização extraterrestre benevolente), você o aconselharia a tomar alguma atitude. Poderia lembrar que Beltrano, que mora na casa ao lado morreu de câncer causado pelo fumo (ok, neste caso, a analogia é parcial mas explícita a Vênus e seu efeito estufa devastador associado ao CO2, com a ressalva, claro de que lá o processo foi inteiramente natural). Poderia lembrar que trocar o hábito do fumo pela corridinha matinal ao final de contas seria trocar um prazer por outro, bem mais saudável, com um monte de co-benefícios... Poderia ponderar que não tem sentido ele acreditar que 97% dos médicos se comporte com má fé e que é mais fácil que uma minoria descredenciada aja assim. Mas se você realmente se importa com Fulano (e com os filhos do Fulano), enfim, diria, nem que fosse necessário dar-lhe um tapa na cara para que ele acordasse... "Fulano, cara... para de fumar!".
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