segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Supertufão Haiyan: dentro de cada nova tempestade violenta está o DNA da indústria de combustíveis fósseis e do capitalismo

Imagem de satélite mostrando o
disco terrestre e o tufão Haiyan
Este texto de minha autoria foi escrito originalmente em língua inglesa, e foi inicialmente publicado, em sua versão completa e em uma versão reduzida, em diversas páginas da internet dedicadas à luta contra a mudança climática e pelo ecossocialismo, incluindo, Campaign against Climate ChangeInternational Viewpoint, Socialist Resistance. Reproduzo-o agora em meu blog, 


No momento em que escrevia este artigo, nas Filipinas, a contagem dos mortos atingia 4000 pessoas e continuava a crescer [1], 12 dias após o Supertufão Haiyan (também chamado de "Yolanda") atingiu aquele país com o poderio de ventos sustentados de 310 km/h e rajadas que chegaram a 375 km/h. Ele foi classificado como de "Categoria 5", a classe das tempestades mais poderosas, usando a escala atualmente adotada para classificar furacões [2]. No entanto, com ventos tão fortes, se uma nova classe fosse adicionada à escala oficial, Haiyan certamente seria classificado como "Categoria 6". Ele foi reconhecido como uma das tempestades mais violentas a atingir assentamentos humanos em todos os tempos. Juntamente com os ventos intensos, a inundação provocada pela tempestade provocou imediatamente uma quantidade enorme de danos materiais e perda de vida. Muitas centenas de milhares de pessoas ficaram desabrigados; muitos foram transformados em órfãos/órfãs e viúvos/viúvas.


Haiyan pode ser apenas uma amostra das tempestades de um futuro próximo

"Ao se aquecer o clima, basicamente se aumenta o limite de velocidade dos furacões"
— Kerry A. Emanuel, cientista atmosférico, MIT

A escala de classificação de furacões provavelmente
precisará ser expandida para acomodar as tempesta-
des incrivelmente violentas formadas num clima
mais quente! Fonte: terra.com.br
Tufões (no Pacífico) e furacões (no Atlântico) são essencialmente o mesmo fenômeno: ciclones
tropicais. Esses sistemas meteorológicos se formam sobre águas oceânicas quentes, em cima das quais o ar se aquece e sobe, deixando uma baixa pressão na superfície. Devido à rotação da Terra, quando uma baixa pressão aparece, o ar não é simplesmente sugado para ela, como num aspirador de pó. Ao invés disso, os ventos são desviados e começam a girar no sentido horário (no hemisfério Sul) ou anti-horário (no hemisfério Norte). À medida que o ar ganha velocidade, aumenta-se a evaporação, trazendo uma quantidade abundante de vapor d'água para a atmosfera. O movimento ascendente transporta a umidade para níveis superiores, onde o vapor se condensa, produzindo nuvens. Neste processo, as moléculas de água que originalmente vieram de um oceano aquecido, ao passarem de vapor para a fase líquida, liberam a grande quantidade de energia que contêm ("calor latente"). Como consequência, o ar se aquece ainda mais e tende a acelerar para cima. Este processo fortalece o sistema de baixa pressão, o que faz com que a rotação do vento fica mais forte, mais uma vez aumentando a evaporação e assim por diante. Tufões e furacões, portanto, nascem daquilo que os cientistas do clima chamam de "feedback positivo" ou retroalimentação. Se as condições são favoráveis ​, estes monstros surgem como tempestades autossustentadas e poderosas, que têm em águas oceânicas quentes a sua fonte de "alimento".

Esquema simplificado de formação de um furacão.
Fonte: Folha online.
Com base nisso, imagine o que poderíamos esperar se as temperaturas do oceano subirem... E elas subiram. Muito. De acordo com o recente 5º Relatório de Avaliação (AR5) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a superfície do mar se aqueceu a uma taxa média de mais de um décimo de grau Celsius por década, desde os anos 70. Isto não é de todo surpreendente, afinal os oceanos retêm cerca de 93% do excesso de calor associado com desequilíbrio energético da Terra provocado pelo efeito cumulativo das emissões humanas de gases do efeito estufa (especialmente CO2). Na verdade, a energia térmica vem se acumulando, nos 700m do oceano superior, a uma taxa de 137 TW (Tera-Watts). Isso é cerca de 60 vezes maior do que toda a eletricidade gerada por nossa espécie em todo o mundo[3]! Ora, essa energia precisa ser liberada de alguma forma! E as tempestades não são nada mais do que um meio perfeito que o sistema climático tem para resolver esta instabilidade física, movendo uma enorme quantidade de energia armazenada nos oceanos (amplificada pelo aquecimento global) para a atmosfera. Haiyan pode ser apenas uma amostra do que está por vir.

Além disso, sabe-se que o aquecimento provoca a expansão da água do oceano, elevando o nível do mar. Junto com o efeito humano, já perceptível no nível médio global dos oceanos, a contribuição de fatores naturais soergueu os níveis das águas nas vizinhanças das Filipinas a uma taxa de cerca de 10 cm por década nos últimos anos, como também mostrado pelo IPCC. Como os oceanos continuam a subir, os impactos de todas as tempestades em áreas costeiras tendem a ser amplificados.



Pode-se dizer que o aquecimento global está causando essas tempestades?

Às vezes algumas pessoas dizem: "sempre houve grandes tempestades". De fato, entre 1961 e 1990 (período usado pela Organização Meteorológica Mundial para definir a referência do "clima do presente") houve 10 furacões muito intensos (ou de categoria 5) no Atlântico e há registros de tempestades mortais atingindo as Filipinas desde o século XIX (como o tufão Angela que matou 1800 pessoas em 1867).

No entanto, no momento, as temperaturas da superfície do mar globais estão, em média, cerca de 0,4°C mais quentes que a média de 1961 a 1990 e provavelmente mais de 0,6°C acima do que costumavam ser há 150 anos. E cada décimo de grau importa quando se trata da quantidade de vapor que pode sair dessas águas quentes, pois esta cresce com a temperatura, de acordo com uma Física simples [4]. Além do mais, graças ao mesmo mecanismo físico, a quantidade de vapor d'água na atmosfera aumentou em 3,5% nos últimos 40 anos.

Já que o aquecimento global significa águas mais aquecidas e mais vapor d'água na atmosfera, a conclusão é de que um mundo mais quente, que é o que já temos agora, é mais propenso a produzir tempestades maciças como Haiyan! É por isso que muitos de nós, cientistas do clima, não aceitamos mais o velho jargão que simplesmente sugere que "nenhuma tempestade individualmente é causada pelo aquecimento global". Esta é uma meia-verdade ou pior do que isso. Se o aquecimento global fornece combustível extra para as tempestades gigantes, todas as tempestades no presente já tem a impressão digital humana; cada tempestade em si tem maior chance de ser mais forte do que seria sobre águas mais frias. Como um todo, elas sequer podem ser vistas mais como "fenômenos naturais"!

Há uma abundância de analogias para este tipo de "causalidade probabilística". Um exemplo clássico é fazer uma aposta em um cassino com dados viciados, sendo que o resultado da trapaça pode não ser claro quando o dado rolar somente uma vez, mas pode mostrar um efeito espetacular depois de várias repetições, já que os números nos dados não têm a mesma chance de ocorrência. Outra maneira didática de ilustrar o problema é descrever atmosfera e oceanos mais quentes como atletas que usam esteróides e/ou estimulantes. Um(a) jogador(a) de futebol, sob o efeito de qualquer destas substâncias, certamente, tem seu(sua) performance global alterada. Embora atribuir um chute ou corrida em particular com a presença dessas substâncias em sua corrente sanguínea possa ser difícil, seria cinismo usar isso para desconsiderar o papel que desempenham no desempenho geral do(a) atleta em uma partida. Isto é exatamente o que os negadores da mudança climática fazem para ajudar a causa da indústria de combustíveis fósseis. Em oposição a isso, é cientificamente razoável considerar que o aquecimento global já está alimentando tempestades mais fortes!

A 400 PPM de CO2 atmosférico, a indústria de combustíveis fósseis deve ser responsabilizada pelos maiores desastres

Desastres das proporções de Haiyan não podem pesar sobre os
ombros dos trabalhadores de países pobres. É sobre a indústria
de combustíveis fósseis que precisa recair a responsabilidade
por eles, seus prejuízos e mortes.
O aquecimento global atual é causado pelo acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera da Terra, como sucessivamente verificado nos relatórios do IPCC e num grande número de trabalhos científicos que mostram evidências claras disso. Quando nos aproximamos de um valor médio anual de 400 partes por milhão de CO2, muito acima do "limite de segurança" sugerido pela ciência do clima, de 350 ppm [5], a contribuição humana para o desequilíbrio energético da Terra, principalmente por causa dos gases, nos dá uma quantidade de energia equivalente à explosão de 17 bombas de Hiroshima por segundo. Uma parte significativa desse desequilíbrio aquece o oceano, especialmente em sua porção superior [6].

Devido aos combustíveis fósseis serem a fonte de emissões de gases do efeito estufa mais importante (CO2), é razoável afirmar que as companhias de petróleo e carvão, de fato, têm responsabilidade na intensificação dos ciclones tropicais. A questão que precisa ser levantada é: será que vamos permitir a elas manterem-se escondidas por trás das incertezas na ciência do clima (por causa das limitações que ainda persistem na rede de observação e nas ferramentas de modelagem computacional), quando há um mecanismo físico claro que liga o aquecimento global e oceanos mais quentes a mais eventos extremos e furacões mais vigorosas e tufões? Se há uma grande evidência mostrando-nos que um mundo mais quente vai dar luz a tempestades monstruosas, que Haiyan pode se tornar o primeiro de uma série de desastres devastadores; vamos permitir que as empresas de combustível fóssil permaneçam na impunidade?

A influência do CO2 adicional na atmosfera é ubíquo. Portanto, a influência das corporações de combustíveis fósseis, que despejou esse gás para a atmosfera como resíduo, está dentro de tudo o que acontece na atmosfera da Terra hoje e, consequentemente, nas outras componentes do sistema climático [7]. Além disso, a quantidade de CO2 na atmosfera além dos níveis pré-industriais, mesmo sem nenhuma emissão antrópica a mais, já é capaz de aquecer o mundo pelo menos em alguns décimos extras de um grau Celsius. Ela também é capaz de manter uma tendência de longo prazo de aquecimento nos oceanos profundos que pode durar por muitos séculos ou alguns milênios, com muito mais do que a elevação do nível do mar como consequência. Esses dois fatores (águas mais quentes que impulsionam os ciclones tropicais com ventos mais fortes e mais precipitação e nível do mar elevado, que amplifica os efeitos da tempestade) ampliam os impactos do desastre causado pelo desembarque de um furacão ou de um tufão especialmente sobre as pessoas mais pobres e mais vulneráveis.

A tendência, no entanto, é que as emissões continuem a aumentar ano após ano e mais CO2 se acumular, ultrapassando outras fronteiras, muito além de 350 ppm. Além de proporcionar um aquecimento de mais de 2°C em relação aos tempos pré-industriais, ir além de 450 ppm é como andar em areia movediça. O aquecimento global pode se tornar auto-sustentável se alguns "feedbacks positivos" sejam iniciados em certa intensidade. Isto inclui o "feedback do vapor d'água" (quanto mais quente o ar, mais vapor ele é capaz de reter, mas o vapor é em si um gás com efeito de estufa e a sua presença aumentada na atmosfera favorece ainda mais o aquecimento desta e da superfície embaixo) , o "feedback gelo-albedo" (quanto mais quente o mundo, mais a perda de gelo ocorre e, como as calotas de gelo são superfícies brilhantes que refletem uma grande parte da luz solar, evitando a sua penetração para o oceano e sua absorção por ele, a redução do gelo leva a um maior aquecimento e assim por diante, ou seja, o aquecimento produz derretimento, o que favorece aquecimento), o "feedback do permafrost" (o solo congelado contém matéria orgânica e, como ele derrete por causa do aquecimento global, essa matéria fica exposta à decomposição, liberando tanto metano quanto dióxido de carbono na atmosfera, aumentando assim o efeito estufa, proporcionando um aquecimento extra, e produzindo mais degelo do permafrost), etc. Outros feedbacks envolvem a quebra da estabilidade dos biomas terrestres, como as florestas tropicais, a liberação de metano que está armazenado atualmente no fundo dos oceanos sob a forma de clatratos e mais.

Yeb Saño, líder da delegação filipina, chora, durante discurso
na COP19. A tradução de sua fala está disponível em nosso
blog, através deste link.
Talvez as altas concentrações de metano encontradas no Ártico [8] e a desintegração do gelo marinho do Pólo Norte (muito bem documentado na literatura científica , incluindo o AR5 do IPCC) ainda não sejam totalmente indicadores de mudanças climáticas irreversíveis. Mas esses fatos devem pelo menos ser tomados como alertas graves para o risco de disparo desses feedbacks que podem vir a conduzir o sistema climático da Terra a uma espiral instável, fora de controle. Assim, só nos cabe concordar com o Sr. Yeb Sano, da delegação filipina na Conferência 19 das Partes (COP19) em Varsóvia, que descreve a crise climática como "loucura".

De loucura a inferno total?

" Minha filosofia é ganhar dinheiro. Se eu puder perfurar e ganhar dinheiro, então é isso que eu vou fazer. "
- Rex Tillerson, Chairman, Presidente e CEO da Exxon Mobil

A queima do conjunto das reservas fósseis pode nos lançar
a uma condição climática que reproduza, ou mesmo ultra-
passe aquelas do PETM (Máximo térmico do Paleoceno-
Eoceno), período no qual não havia calotas polares em
nosso planeta, e com temperaturas médias globais mais
de 12 graus acima do presente.
De acordo com estimativas recentes, há cerca de 7,3 a 11 trilhões de toneladas de carbono armazenadas em reservas de combustíveis fósseis (incluindo não só o petróleo, o carvão e o gás convencionais, mas também as areias betuminosas, gás de folhelho e outras fontes não convencionais), como afirma o GEA [9].

Como seria um mundo com todos os combustíveis fósseis queimados? De acordo com um artigo escrito por Dr. James Hansen e colaboradores, publicado no "Philosophical Transactions of the Royal Society" [10], ele pode se tornar simplesmente inabitável em muitas áreas. Com base em evidências de climas passados ​​particularmente quentes (como o Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno e o Optimum climático do Eoceno Médio, há cerca de 56 e 42 milhões de anos atrás, respectivamente) e em modelagem, afirmam que "um aquecimento global dessa magnitude iria tornar a maior parte do planeta inabitável por seres humanos. O corpo humano produz cerca de 100 W de calor metabólico do qual deve se livrar para manter uma temperatura corporal de cerca de 37°C, o que implica que temperaturas de bulbo úmido superiores a 35°C sustentadas podem resultar em hipertermia letal. No presente, a temperatura no verão é muito variável sobre a superfície da terra, mas a temperatura de bulbo úmido é mais limitada pelo efeito da humidade, com seu valor mais comum de cerca de 26-27°C e o mais elevado de cerca de 31°C. Um aquecimento de 10-12°C colocaria a maioria da população mundial de hoje em regiões com temperatura de bulbo úmido acima de 35°C".

Em Tacloban, grande cidade mais atingida por Haiyan, o odor
dos cadáveres em decomposição invadiu o ar por dias a fio.
Este cenário extremo é o que podemos alcançar, se queimarmos os mais de 7 trilhões de toneladas de carbono fóssil armazenados como carvão, petróleo e gás. Para aqueles que podem ser céticos em relação a tal cenário, nosso planeta vizinho, Vênus, com temperaturas médias acima de 460°C, nos lembra o que um efeito-estufa descontrolado pode produzir: um inferno onde estanho e chumbo são líquidos, sem água e sem nenhuma chance de vida complexa (pelo menos como a conhecemos), e coberto por uma densa atmosfera composta principalmente de CO2, com espessas nuvens de ácido sulfúrico.

Na região de Tacloban, apelou-se para valas comuns, com
dezenas a centenas de corpos
Mas muito antes desta situação extrema, podemos ter de enfrentar o problema de que nenhuma adaptação é possível para muitos milhões, talvez bilhões de pessoas, tendo em vista as mudanças esperadas na ocorrência de eventos extremos (não apenas ciclones tropicais, mas também inundações, deslizamentos de terra, ondas de calor, incêndios florestais, tempestades de neve - sim, eles ficar mais intensa em um mundo mais quente, com mais vapor de água atmosférico, mesmo durante o inverno - secas, etc.). Para as populações mais vulneráveis, a adaptação já não simplesmente possível para um aquecimento muito maior do que aquele que já temos. As Filipinas são um exemplo claro de que, para os mais pobres, a adaptação já é difícil para as tempestades do presente. Cada décimo de grau Celsius é importante, a menos que a classe dominante do mundo realmente aposte na multiplicação dos refugiados do clima e dos sacos para cadáveres!

O povo deve tomar o controle dos combustíveis fósseis para mantê-los onde eles estão

"Estamos mais propensos a ver outras empresas como colaboradores, em vez de concorrentes... Não estamos a competir uns com os outros tanto quanto estamos competindo com a Terra. E talvez isso seja uma maneira saudável de olhar para a questão."
- George Kirkland , diretor da Chevron Nigéria

"A viabilidade ou inviabilidade é, em dada instância, uma questão da relação de forças, que só pode ser decidida pela luta".
- Leon Trotsky, no "Programa de Transição"

Apesar de todas as evidências apontando para a mudança climática como uma questão extremamente grave e urgente, não está no plano das corporaçõea reduzir os seus lucros, permitindo os cortes drásticos nas emissões de CO2 tão necessárias. Essas empresas possuem reservas de combustíveis fósseis capazes de, se queimadas, a conduzirem o sistema climático a um ponto de não-retorno. O relatório intitulado "Unburnable Carbon 2013" afirma que o balanço de carbono para um cenário aquecimento de 2°C seria de cerca de 565 a 886 bilhões de toneladas (Gt) de CO2 até 2050. Este montante é o que vem da queima de meras 154 a 242 Gt de carbono fóssil, que é muito menos do que se foi estimado pelo GEA em reservas de combustíveis fósseis do mundo! Essas empresas estão fundidas com o sistema financeiro, tal como descrito em cores fortes pelo Transnational Institute, e só 200 delas possuem reservas que contêm muito mais carbono do que este balanço apertadíssimo, visto que a queima de suas reservas certificadas corresponderia à emissão de 746 GtCO2, mais uma vez de acordo com o Unburnable Carbon 2013. Na verdade, apenas uma empresa de carvão (Severstal JSC) e três companhias de petróleo (Lukoil, Exxon e British Petroleum) controlam reservas  que podem produzir quase 261 GtCO2, acima do limite superior das estimativas do balanço de carbono para 2°C [11]. Os empresário querem que essa enorme quantidade de carbono fóssil seja extraído e queimado, para se transformar em lucro. Mas isso se choca com a própria estabilidade do clima da Terra e do ecossistema global e destrói as condições materiais necessárias para garantir a sobrevivência a longo prazo de nossa espécie (e de muitos outras).

Portanto, enquanto essas reservas de combustíveis fósseis sejam mantidos como propriedade privada, mais são minadas as chances de manutenção das condições objetivas, físicas, materiais, para uma sociedade humana com base em dignidade, igualdade e justiça. Assim sendo, elas devem se tornar propriedade colectiva, a fim de serem mantidas intactas... "Petróleo, carvão! É pra ficar no chão" [12].

Leon Trotsky, em seu Programa de Transição parecia sempre impulsionado por um senso de urgência, por causa dos efeitos que a crise econômica logo antes da Segunda Guerra Mundial estava produzindo na classe trabalhadora. Ele afirmou: "A questão é de resguardar o proletariado da decadência, desmoralização e ruína. A questão é de vida ou morte para a única classe criativa e progressiva, e por isso mesmo a do futuro da humanidade. Se o capitalismo é incapaz de satisfazer as demandas inevitavelmente decorrentes das calamidades geradas por ele mesmo, que morra!"

Talvez o que estejamos enfrentando em relação à mudança climática não seja apenas a urgência de proteger os pobres, os trabalhadores, a juventude, as mulheres, os indígenas, os camponeses, ou seja, os protagonistas da mudança; da decadência, ruína e até mesmo da morte, como Haiyan produziu de uma forma dramática. Talvez estejamos falando de salvaguardar a própria estabilidade dos ciclos biogeoquímicos globais e das condições físicas que permitem que comida e água se tornem acessível para os humanos. Nenhum socialismo é possível em um país isolado. A barbárie se tornará muito mais provável do que o socialismo em uma Terra arrasada.

Notas:
[1] O total de mortos há 5 dias chegou a 6092 pessoas.
[2] A escala de Saffir-Simpson é apresentada a seguir: furacões de categoria 1 possuem ventos entre 119 e 153 km/h, seguidos pelos de categorias 2 (154 a 177 km/h), 3 (178-208 km/h), 4 (209-251 km/h) e 5 (≥ 252 km/h).
[3] A quantidade de energia elétrica produzida mundialmente em 2010 de acordo com a EIA (Administração de Informação Energética) foi de 20.238 bilhões de kWh, o que corresponde, já que um ano contém 8760 horas, a 2.3 bilhões de kW ou 2,3 TW (Tera-Watts).
[4] Mais especificamente a "equação de Clausius-Clapeyron", que mostra que a pressão de vapor de saturação cresce (quase exponencialmente) com o aumento de temperatura.
[5] Hansen et al. (2008): Target atmospheric CO2: Where should humanity aim?, Open Atmos. Sci. J. (2008), vol. 2, pp. 217-231.
[6] O desequilíbrio energético da Terra devido a fatores antrópicos é da ordem de 2,29 W/m2, o que, ao se multiplicar este número pela área total da superfície do planeta nos dá 3,7⋅1022J (1J = 1 Joule, a unidade de energia no Sistema Internacional). Uma parte significativa não é retida no sistema climático, pois como a Terra se aquece, ela irradia mais infravermelho. De qualquer forma, cerca de 1/4 disso é armazenado nos oceanos (fluxo de energia de 0,71 W/m2, de acordo com o AR5 do IPCC).
[7] Nos oceanos, além do aquecimento o excesso de CO2 atmosférico também está levando a uma rápida acidificação, com consequências potencialmente catastróficas para a biota marinha, à medida em que os organismos que dependem da fixação de carbonato não conseguem crescer num ambiente ácido (na realidade as conchas e exoesqueletos de muitas formas de vida tendem literalmente a se dissolverem caso o oceano se acidifique a partir de um certo ponto, a saturação com respeito à aragonita, uma das formas de carbonato de cálcio).
[8] Especialistas estimaram um “aumento de 7% rise nas emissões de terras alagadas entre 2003 e 2007, devido ao aquecimento dessas regiões em latitudes médias e no Ártico” (Bloom, A. A.; Palmer, P. I.; Fraser, A.; Reay, D. S.; Frankenberg, C., 2010: Large-Scale Controls of Methanogenesis Inferred from Methane and Gravity Spaceborne Data, Science, v. 327, p. 322–325).
[9] Global Energy Assessment 2012 Toward a sustainable future (eds Johanson TB, et al.). Laxenburg, Austria: International Institute for Applied Systems Analysis.
[10] Hansen, J., Mki. Sato, G. Russell, and P. Kharecha, 2013: Climate sensitivity, sea level, and atmospheric carbon dioxide. Philosophical Transactions of the Royal Society A, 371, 20120294, doi:10.1098/rsta.2012.0294.
[11] Muitos outros cálculos podem ser feitos utilizando os dados disponíveis neste link, baseados no Unburnable Carbon 2013.
[12] Uma adaptação da palavra de ordem "The oil in the soil and the coal in the hole".

Um comentário:

  1. Muito bom, Alexandre. Me foi possível entender o geral, mesmo tendo "derrapado" em alguns pontos específicos da Ciência do Clima. A tese de que as ações antrópicas afetam as mudanças climáticas -- sua intensidade e frequência -- está cada vez mais visível aos olhos, embora a cegueira (José Saramago) ainda prevaleça.
    Não sei se todos conhecem, mas há um documentário em que as imagens falam gritantemente sobre o degelo no polo norte, muito mais do que um modelo estatístico do Painel. Chama-se "Chasing Ice" -- literalmente caçando gelo!!! (Também poderia ser em busca do gelo (tesouro) derretido (perdido).) O produtor (não lembro o nome) era um cético! Com Saramago diríamos, um "cego". Era cego mas era honesto.
    Até quando a lógica destrutiva do modo de produção do capital continuará impondo um modo de vida que atenta contra a vida?
    A denúncia sobre os efeitos socioambientais da agudização da ruptura metabólica, proporcionada pelas ações orientadas pelo lucro e o crescimento econômico ilimitado, é um bom combate que vale à pena ser amplamente disseminado. A Ciência da Vida é a síntese transdisciplinar que precisa ser cultivada para além dos saberes estabelecidos.
    Let's go everybody!
    Aécio

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