Através de repressão violenta no dia do leilão do pré-sal, o Governo Dilma fez valer a vontade das multinacionais do setor petroquímico. |
Concedi, recentemente, entrevista ao "letra P", importante portal de notícias da Argentina, através do companheiro Bruno Bimbi, que nele publica. O original da entrevista, em espanhol, pode ser encontrado neste link. Na entrevista, abordo a gravidade da questão dos leilões do petróleo no Brasil e sua ligação com as questões ambiental e climática.
1) Você poderia explicar o
que foi exatamente que o governo Dilma fez com as reservas do pré-sal?
O
governo Dilma colocou a leilão a exploração do Campo de Libra, uma das maiores
reservas petrolíferas do mundo, estimada em 8 a 12 bilhões de barris de petróleo.
O leilão levou à conformação de um único consórcio, envolvendo, além da
Petrobrás, duas estatais chinesas e duas gigantes europeias do ramo do petróleo,
Shell (anglo-holandesa) e Total (francesa). Vergonhosamente arrebatado pelo
preço mínimo, o direito à exploração do referido campo se dará com a Petrobrás
como minoritária (40% da cota, apenas 10% acima da proporção mínima prevista
em lei), com 20% para as estatais chinesas e os outros 40% igualmente divididas
entre as gigantes europeias.
2) O governo diz que não é
uma privatização, mas uma "concessão". Na prática, qual é a
diferença?,
Trata-se
evidentemente de um jogo de palavras, mas que não se sustenta. O governo do PT
passou a adotar o eufemismo “concessão” para a sua política privatista em
relação a aeroportos, rodovias, portos, etc. Mas se nesses casos o uso do termo
tem o propósito claro de esconder a essência do processo, isto é, favorecer o
capital privado com superlucros advindos da exploração desses setores, no caso
do petróleo, trata-se de desonestidade intelectual pura. Ora, na dita
“concessão” (ou “privatização temporária”) de um aeroporto, pode haver alguma
expectativa de retomada do mesmo para o patrimônio público, após o tempo de
contrato (apesar de pessoalmente não ter a menor confiança nesse processo). Mas
em se tratando do petróleo ou de qualquer reserva mineral, a privatização é,
por essência, irreversível! Após extraído e queimado, ele não retorna ao
subsolo! O que o Brasil receberá ao final? Poços vazios? A sociedade precisa,
sim, saber que se trata do processo de privatização mais danoso que se possa
imaginar.
3) Na campanha de 2010, Dilma
acusava Serra de querer privatizar o pré-sal e pedia votar nela para impedi-lo,
descumpriu a promessa?
Com
certeza, descumpriu. Aliás, a traição dos governos do PT em relação às suas
bandeiras originais é gritante. A reforma agrária e a demarcação de terras
indígenas deram lugar ao favorecimento ao agronegócio; a proteção das florestas
deu lugar ao apoio ao desmonte do Código Florestal; uma verdadeira distribuição
de renda deu lugar a uma política concentradora, em que a transferência de
recursos vultosos para o setor financeiro via juros e serviços da dívida
pública em quantidade muito maior do que o que se destina aos programas sociais.
No caso do pré-sal, é apenas mais uma entre tantas...
4) Qual é, quantitativa e
qualitativamente, a relevância do leilão de Libra?,
O
tamanho da reserva petroquímica, de até 12 bilhões de barris, por si só, já é
impressionante, pois implica em um valor de mercado que provavelmente
ultrapassa um trilhão de dólares, já que a cotação do barril está acima de
U$100. O bônus de assinatura do contrato de concessão no valor de R$ 15 bilhões
(menos de 7 bilhões de dólares), representa, portanto, muito menos de 1%.
A
grande manobra do Governo Dilma em relação aos leilões do petróleo sempre foi a
fraude dos “100% dos royalties para a Educação”. Como se não bastasse o fato de
tal percentagem não ter sido aprovada, o mais escandaloso é que os royalties no
Brasil estão entre os mais baixos do mundo. Nosso país cobra somente 10% do
valor do petróleo explorado (15% no caso do pré-sal), enquanto diversos países
do mundo cobram 30% ou mais, o que claro como este governo serve docilmente ao
grande capital internacional. Cinicamente, ao invés de atacar o verdadeiro
problema da falta de verbas para a Educação e a Saúde, que é a quantidade
gigantesca de recursos anualmente transferida para os bancos mediante pagamento
de juros e serviços da dívida pública, o governo fez crer que entregando os
campos de petróleo às multinacionais e recolhendo as migalhas dos royalties
resolveríamos algum problema.
Mas
para mim, é evidente que o prejuízo financeiro, ainda que escandaloso, é o
menor! Infelizmente, mesmo setores críticos do leilão não têm se debruçado
sobre a questão ambiental e climática em jogo.
Em
primeiro lugar, há um risco evidente na exploração de petróleo a grandes
profundidades. Em condições “normais”, já há impactos sobre a vida marinha,
amplamente documentados, mas em caso de acidentes, eles o caráter é de
verdadeira catástrofe. O acidente no Golfo do México, sob responsabilidade da
British Petroleum, em 2010, é um exemplo. Quase 5 milhões de barris vazaram. O
impacto sobre a vida marinha foi enorme, com a mortandade imediata de muitos
peixes e cetáceos. Muitas praias, com atividades ligadas à pesca e ao turismo
foram atingidas. Além da devastação provocada pelo óleo vazado, o processo de
“limpeza” envolveu o uso de químicos que configuraram um segundo ataque ao
ambiente local. Vários dos danos são irreversíveis. Peixes e crustáceos com má
formação congênita são extremamente comuns. A pesca pode permanecer arruinada
por várias décadas.
No
caso do leilão de Libra, é evidente que não temos garantias minimamente
decentes contra acidentes. A CNPC, uma das estatais chinesas participantes do
consórcio, com menos de duas décadas de existência, já tem uma longa ficha
literalmente suja! Em 2003, foi responsável por um vazamento de Gás em
Chongqing, que resultou em explosão com 243 mortos e 2142 hospitalizados. Nos
anos seguintes, contaminou os rios Songhua e Chishui e o oceano, no porto de Xingang
e este ano teve todas as suas operações no Chad suspensas, após violar
sistematicamente a legislação ambiental naquele país. A Shell, por sua vez, não
consegue se sair melhor, já que foi responsável pela devastação completa do
delta do Rio Niger, na Nigéria. É um padrão comum a todas as grandes
petroquímicas.
Mas é
evidente que há uma questão ainda maior, que é a questão do clima global. A
exploração e uso de combustíveis fósseis precisa urgentemente ser limitada e
leilões de petróleo, gás, carvão, xisto, etc., se colocam inteiramente na
contramão da proteção necessária à estabilidade climática.
6) Essa visão o torna um
crítico da política do governo Dilma com relação aos combustíveis fósseis. Você
poderia falar mais a respeito?
A
Ciência do clima é absolutamente clara clara: o sistema climático está
realmente aquecendo por conta da acumulação de gases de vida estufa de vida
longa, especialmente dióxido de carbono e a origem desse desequilíbrio químico
atmosférico está nas atividades humanas, especialmente no uso de combustíveis
fósseis (carvão, petróleo e gás natural), como estabelecido nos relatórios de
avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), o que
foi particularmente reforçado no seu 5º Relatório, recém-publicado.
Terminaremos 2013 perigosamente próximos a 400 ppm (partes por milhão) de CO2
na atmosfera, quando deveríamos evitar atingir 450.
Globalmente,
a não ser que este processo seja contido, os impactos do aquecimento global serão
generalizados, profundos e recairão principalmente sobre os mais pobres e
vulnerabilizados. Incluem o aumento na ocorrência de ondas de calor mais
fortes, secas mais intensas e tempestades severas, assim como incêndios
florestais mais frequentes, perigosos e devastadores, derretimento de gelo
polar, quese
tornará o causador mais importante de elevação do nível dos oceanos, o
branqueamento de corais e uma grande mortalidade de organismos que dependem da
fixação do carbonato de cálcio para sobreviverem, etc. Mudanças no regime de
precipitação certamente colocarão a agricultura e o abastecimento urbano de
água em perigo em muitas localidades. As consequências para países insulares,
cidades costeiras,
povos tradicionais (indígenas, pescadores, etc), pequenos agricultores e as
pessoas e países mais pobre são óbvias.
Nesse
sentido, pela primeira vez, um relatório do IPCC estabelece claramente que há limites
severos para a queima de combustíveis fósseis, cuja extrapolação pode conduzir
à irreversibilidade do aquecimento global. Para que tenhamos boas chances de
manter o aquecimento global abaixo de dois graus, somente 259 bilhões de
toneladas de carbono fóssil podem efetivamente ser queimados. Mais de 700 GtC
estão já nas mãos de poucas empresas e, portanto, é preciso expropriá-las, para
que se tenha a chance de evitar a sua queima. O governo Dilma tem apostado
precisamente no contrário, isto é, privatizar esse carbono. A quebra do
monopólio estatal por FHC e os leilões do petróleo de Dilma vão inteiramente na
contramão da necessária
contenção da extração e queima desses combustíveis. Basta dizer que os dois
leilões promovidos este ano (em maio e em outubro) repassaram para mãos privadas
quase 4 bilhões de toneladas de carbono fóssil contido no petróleo que, em
sendo queimado, implica na emissão de CO2 equivalente a 2 ppm a mais na
atmosfera!
Há alternativas para o uso de combustíveis fósseis em esca- la global que, além de preservarem o clima, são socialmen- te justas. |
7) Qual seria a alternativa a
esta política?,
Há
alternativas! Claras, factíveis, que não têm sido implementadas pelos governos
nacionais simplesmente porque estes permanecem de joelhos diante das
corporações do setor de combustíveis fósseis.
Há
mecanismos para limitar o uso de combustíveis fósseis e o comprometimento do
sistema climático. Essas alternativas podem ser socialmente justas, incluindo
a
microgeração de energia. O Brasil, em particular, tem amplas possibilidades de
aproveitá-las, com ênfase em solar e, com o devido respeito aos limites
sócio-ambientais, a eólica. Cada residência pode aproveitar a energia solar
para aquecimento de água e geração elétrica, sendo que na Alemanha e em outros
países isso permite abatimento das contas de energia e até ganhos reais caso a
energia gerada pelo usuário seja maior do que a consumida. Juntamente com a
energia eólica, conformaria a complementação perfeita da energia gerada em
nossas hidrelétricas com zero emissão de gases de efeito estufa, distribuição
de renda e segurança energética. Além do mais, limitar as emissões devido ao
transporte é possível, desde que se aposte em transporte público, de massas e
não poluente, na lógica de que o mesmo é um direito e, portanto, deve ser
fornecido com tarifa zero. Por fim, uma política clara de desmatamento zero
complementaria a necessária descarbonização de nossa economia e mostraria que
uma outra via de desenvolvimento, socialmente justa e ecologicamente
equilibrada é não só necessária como possível.
Infelizmente,
o lobby das companhias energéticas e da indústria de combustíveis fósseis é
enorme. A ele, no Brasil em particular, se une o agronegócio. E o combate às
políticas públicas necessárias para defender o ambiente e o clima chegam ao
ponto de financiar estratégias de negação do aquecimento global, incluindo
ataques covardes e levianos à comunidade científica. Precisamos, portanto, mais
do que nunca, dialogar com a sociedade a respeito da gravidade e urgência do
problema.
8) Qual a sua opinião sobre a
decisão da presidenta de usar o exército para reprimir os protestos?
É
simplesmente um absurdo ver que todo o aparelho de repressão do estado
(exército, força nacional, polícias militares, guardas municipais) está, na
atual conjuntura, sendo lançado contra a juventude, os trabalhadores, os povos
indígenas, as mulheres, a comunidade LGBT, e todos os que se mobilizam por
direitos. A bandeira do passe livre, o respeito ao direito à Educação e a uma
remuneração digna para professores, o combate à privatização do petróleo e
tantas outras reivindicações colocadas nas ruas desde Junho são absolutamente
justas.
Ao
ver o governo Dilma e os vários governos estaduais e municipais (de Cabral/Paes
a Alckmin, de Agnelo a Cid Gomes/Roberto Cláudio) promovendo a repressão
generalizada, percebemos que é necessário, a fim de que desde os direitos e
liberdades civis mais elementares até o direito à estabilidade do clima e do
ambiente globais sejam respeitados e assegurados, que uma alternativa ampla,
contra o conservadorismo e truculência do capital e seus governos seja
construída.
Alexandre Costa é professor
titular da Universidade Estadual do Ceará e filiado ao Partido Socialismo e
Liberdade. É um dos autores do primeiro relatório do Painel Brasileiro de
Mudanças Climáticas (PBMC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário