O Problema das "Emissões Negativas"
O Acordo de Paris estabeleceu como limite aceitável para o aquecimento global até o final deste século um valor "bem abaixo de 2°C" e preferencialmente abaixo de 1,5°C, valor este historicamente defendido pelos países mais vulneráveis em particular os países insulares através de sua associação, a AOSIS. Dos quatro cenários trabalhados nos relatórios do IPCC (os RCPs ou trajetórias de concentrações representativas) apenas um atende a essa prerrogativa, o chamado RCP2.6. Dois deles (RCP4.5 e RCP6.0) ficam no meio do caminho, enquanto o cenário de "negócios como sempre" (também conhecido como "cenário f*da-se") não deixa dúvidas de que se trata de uma catástrofe absoluta. Uma breve descrição desses cenários é apresentada nesta reportagem e a descrição pormenorizada está disponível (em inglês) no artigo publicado por van Vuure et al. na Climate Change.
Seria possível permanecer emitindo grandes quantidades de gases de efeito estufa desde que haja sumidouros equivalentes, ou seja, desde que retiremos uma quantidade equivalente (ou maior) de carbono da atmosfera? Essa retirada de carbono constituiria o que chamamos de "emissões negativas" e o problema desse conceito é que ele pode levar à ilusão de que é possível seguir aumentando as "emissões positivas" desde que houvesse "emissões negativas" para compensar. A ideia de um "saldo" ou "orçamento" de carbono nos dá a falsa impressão de que é possível fazer uma analogia com o orçamento familiar baseado em renda e despesas, que é uma visão por demais simplista, mas nesse aspecto até mesmo o orçamento familiar pode nos servir de aviso: não podemos aumentar indefinidamente as despesas de nossa casa, porque há limites objetivos para a quantidade de dinheiro que podemos obter a cada mês para fechar as contas!
artigo na Nature Climate Change, em que os autores dizem que a credibilidade da BECCS como opção de mitigação não está comprovada e que a ideia de sua implantação generalizada em cenários de estabilização climática poderia se tornar uma distração perigosa.
Colocando de maneira mais simples, a ilusão de que se poderia ter uma solução tão boa no futuro poderia nos desviar dos necessários esforços para buscar uma redução radical e imediata das emissões de gases de efeito estufa, abandonando os combustíveis fósseis e promovendo transformações revolucionárias no sistema produtivo, na matriz energética, sistema de transportes, alimentação etc. incluindo uma redução na demanda energética global. Apostar na capacidade futura de produzir "emissões negativas" é, portanto, um risco em si inaceitável, quando a saída reconhecidamente segura é uma só: reduzir desde já e da maneira mais acelerada possível as "emissões positivas".
BECCS em larga escala viola os limites planetários
Como se já não bastasse o fato de ser arriscado demais depositar todas as fichas em tecnologias futuras, algo que precisa ser avaliado é que tipo e que dimensão de impacto essa nova tecnologia pode causar se utilizada em grande escala e não poderia ser diferente em relação à BECCS. Mesmo numa escala de regional a continental, sabe-se que há problemas concretos em relação aos chamados agrocombustíveis (etanol, biodiesel) e que embora os mesmos sejam quase neutros em relação ao carbono e portanto uma melhor alternativa em comparação com gasolina, diesel etc., outros impactos socioambientais os acompanham, incluindo a concorrência, no que diz respeito a área de plantio, com a produção de alimentos, o uso de água, a produção de rejeitos, etc.
Eis que um novo artigo recentemente publicado na revista Nature por Heck et al. se propôs a investigar, exatamente por conta da ideia de implantar uma tecnologia de BECCS em grande escala (isto é, global), que impactos essa tecnologia teria sobre outros limites planetários para além do clima.
Figura do artigo de Heck et al. (2018) que mostra como a redução da pressão sobre o clima seria acompanhado do aumento da pressão sobre outros limites planetários. |
O artigo encabeçado por Vera Heck conclui que "ao mesmo tempo que a BECCS visa reduzir a pressão sobre a fronteira planetária para mudança climática, ela muito provavelmente colocaria o Sistema Terra mais próximo do limite para uso de água doce e aprofundaria a transgressão das fronteiras para mudança no uso do solo, integridade da biosfera e fluxos biogeoquímicos" (estas últimas já ultrapassadas).
Sem introduzir pressões ambientais extras em escala regional, o artigo de Heck et al. considera "marginal" o potencial de remoção de carbono via BECCS mesmo usando hidrogênio como rota (o que aumenta a eficiência): de 0,11 a 0,13 bilhões de toneladas de carbono, muito abaixo do necessário segundo a rota prevista no cenário RCP2.6. Por outro lado, já descontadas as emissões de produção e transporte, os autores estimam que na realidade uma remoção de apenas 1,2 a 6,3 (usando a trajetória mais eficiente do ponto de vista energético) bilhões de toneladas de carbono anuais seria obtida via BECCS, mas numa estratégia que "descarta o princípio da precaução e pode disparar feedbacks ambientais críticos".
O uso a mais de fertilizantes implicaria em um aumento do fluxo de nitrogênio entre 56 e 65 teragramas (Tg) por ano. O valor atual, em virtude das atividades humanas, já é de 121 Tg/ano, muito acima do limite de 35 Tg/ano, ou seja, o uso em grande escala de mas fertilizantes para culturas agrícolas voltadas para BECCS amplificaria a geração de zonas mortas na costa e nos oceanos e eutrofização de corpos d'água. Como no caso da água, um uso menor de fertilizantes implicaria em um uso maior de terra ou vice-versa.
Para completar, o impacto seria desigual do ponto de vista regional, atingindo mais duramente os países mais pobres das regiões tropicais, em especial na África, cujos ecossistemas adentram na faixa de alto risco em qualquer cenário, podendo também, caso a prioridade seja dada para a conservação da água doce em detrimento da biodiversidade, ser absolutamente devastador sobre os biomas da América do Sul.
É preciso aceitar a realidade: o cobertor é curto
Vivemos num planeta finito; em que o espaço (compartilhado com todas as outras espécies) no qual cultivamos nossos alimentos, de onde obtemos água doce em quantidade e qualidade adequadas, em que depositamos nossos dejetos, etc. é limitado; em que a ciclagem de matéria (incluindo água, carbono, nitrogênio, fósforo e nutrientes diversos) é regulado; em que determinados materiais só são reciclados naturalmente numa escala geológica. Não é possível comportar uma sociedade cujas demandas de bens de consumo e portanto de matéria e energia sigam crescendo em proporções tão gigantescas e tão desiguais.
Evidentemente desejamos manter uma comunidade global com um padrão tecnológico minimamente elevado e socialmente acessível, com um certo grau de automação e que proporcione dignidade a cada ser humano. Desejamos primariamente que os direitos básicos à alimentação, água, educação, saúde, moradia, etc., sejam assegurados. Mas é preciso que a solução da equação para tal sociedade seja tal que a mesma caiba na biosfera, no ecossistema global.
Podemos até optar por abdicar globalmente do consumo de carne em níveis tão elevados, a fim de abrir terras que hoje servem de pasto ou plantações de grãos para alimentar reses, porcos e aves para que estas forneçam alguma biomassa para que esta contribua para o "mix" de energias renováveis nas quais entram também obviamente a eólica e a solar, desde que também atendendo a limites dos impactos socioambientais que cada uma carrega. Mas não poderemos ter as duas coisas.
Podemos até imaginar sermos capazes de manter um grau menor, mas ainda relativamente elevado de produção/conserto/reposição de bens materiais especialmente se os mesmos estiverem associados a necessidades importantes como saúde e difusão de informação e conhecimento, mas precisaremos lembrar que tais condições só serão sustentáveis com base na plena reciclagem e numa economia circular, mesmo porque se a mineração prossegue invadindo territórios fundamentais para sustentar a biodiversidade global e as nossas próprias fontes de água, tal qual um bumerangue enfeitiçado, ele se voltará contra os (aprendizes de) feiticeiros.
Nossa sociedade, baseada no consumo e no descarte, com setores econômicos desnecessário, perdulários e/ou nocivos que vão desde a indústria bélica à propaganda, da produção com base na obsolescência programada à mineração, passando obviamente pela indústria de combustíveis fósseis, já impõe uma pressão insuportável sobre os sistemas naturais. Por ser tão brutalmente desigual (e com desigualdade crescente), termina não resolvendo questões básicas para a dignidade humana para um contingente humano enorme, ao mesmo tempo que contém uma minoria parasitária e perdulária, cujos impactos associados ao padrão de consumo, são enormes e, se estendidos a uma parcela maior da sociedade, implodiriam imediatamente os limites planetários. Nosso modo de vida, à medida em que impõe uma incessante busca de novas fontes energéticas para atender à demanda crescente, de matéria-prima para responder ao crescimento do consumo de bens, que produziu a idolatria do transporte individual motorizado, que viu crescer a proporção da carne como fonte protéica, que depende de cadeias produtivas extremamente longas e perdulárias que deslocam matéria ao redor do globo com impactos que vão das emissões de gases de efeito estufa à introdução de espécies invasoras via água de lastro em navios, etc., é simplesmente insustentável.
Calculadora Global"), o que requer repensar as transformações da nossa sociedade num nível ainda mais profundo. Mesmo porque ainda que o desenvolvimento dessa tecnologia, ainda incerta, seja "bem sucedido", acaba-se jogando o problema para outras caixinhas, e não adianta ter uma abordagem que não seja sistêmica, que limite o aquecimento global mas às custas do comprometimento do acesso à água ou aceleração da destruição de habitats de outras espécies. Cobre a cabeça, descobre as pernas, numa verdadeira síndrome de cobertor curto. Aceitar a realidade do tamanho desse cobertor e perceber que encolher o próprio tamanho é a única forma de caber sob ele é a ficha que precisa cair de uma vez por todas.
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