Nem tudo o que parece é. Bicho-pau não é graveto. Negacionismo não é uma "visão científica alternativa". |
Sim, o discurso é bem montado: é como se fossem vítimas de perseguição de "inquisitores" que querem "impor um consenso" e calar os "hereges", mas a analogia só encontra algum eco porque as pessoas desconhecem quase que por completo a história da Ciência do Clima, o que será a principal questão abordada nesta Parte I (a parte II será dedicada às acusações bizarras de censura, boicote, etc. que os negacionistas tentam imputar à comunidade científica).
De Fourier a Planck, a Ciência do Clima de mãos dadas com a Física Moderna
Dispositivo utilizado por John Tyndall para medir a absorção de radiação infravermelha por gases. |
Em paralelo, avançavam pesquisas em radiação térmica e não muito tempo depois, Stefan descobriu a relação entre radiação emitida e temperatura (hoje conhecida como Lei de Stefan-Boltzmann): a irradiância é proporcional à quarta potência da temperatura absoluta (isto é, na escala Kelvin). A lei de Wien, que diz que o comprimento de onda de máxima emissão é inversamente proporcional à temperatura absoluta e a relação de Stefan-Boltzmann são ambas empíricas e são conhecidas por precederem a Lei de Planck, pontapé inicial da Física Quântica. Ou seja, a história original da Ciência do Clima está intimamente ligada à própria revolução científica do final do século XIX e início do século XX.
Ora, rejeitar o entendimento de como os gases de efeito estufa interagem com a radiação como fazem alguns negacionistas constitui rejeitar uma parte enorme do escopo da chamada "Física Moderna", que representou um avanço substancial no nosso entendimento do mundo, com a Relatividade e a Quântica. É absolutamente impossível, a não ser por ignorância extrema ou desonestidade aberrante, negar seletivamente a Ciência do Clima e aceitar esse escopo que, por sinal, está por trás de um sem número de tecnologias que hoje usamos repetidas vezes em nosso dia-a-dia.
Arrhenius, o Eratóstenes do Clima
Na esteira das medidas de Foote/Tyndall e das relações empiricamente descobertas por Stefan e outros físicos, veio Arrhenius (sim, o mesmo dos ácidos e bases da Química do Ensino Médio). Com base no conhecimento do final do século XIX, ele estimou que duplicar o CO₂ atmosférico levaria a um aquecimento de 4-5°C (ou que reduzi-lo à metade provocaria um resfriamento de mesma magnitude, o que serviria uma explicação para as recém-descobertas eras glaciais).
Eratóstenes de Cirene não apenas mostrou que a Terra era (aproximadamente) esférica, como calculou seu raio, dois séculos antes de Cristo. |
De Eratóstenes a Arrhenius, aprendemos que a Terra é aproximadamente esférica, com uma atmosfera que não apenas a recobre, mas que controla sua temperatura a partir da concentração de CO₂, mas em tempos de terraplanismo, o negacionismo climático parece fichinha...
O "Debate" já Aconteceu!
"Apesar de o oceano (...) agir como um regulador de enorme capacidade, reconhecemos que a percentagem do 'ácido carbônico' [como comumente chamavam o CO₂] na atmosfera pode, pelos avanços da indústria, mudar num grau considerável no curso de poucos séculos". Essa foi a conclusão a que chegou Arrhenius em 1906, num texto escrito para o público em geral.
A cara do Sid quando alguém diz que as "eras do gelo" são argumento contra o aquecimento global antrópico |
E o que aconteceu quando tais testes foram feitos? A realidade deu razão a Arrhenius. Em 1931, Hulburt mostrou que o CO₂ disparava o que conhecemos hoje como "feedback do vapor d'água", retroalimentação climática fundamental (telegraficamente, o CO₂ aquece a atmosfera, que passa a conter mais vapor d'água e, como este é um gás de efeito estufa, amplifica o efeito do CO₂). Aceitam-se as evidências, passa-se à próxima questão. É o que se espera do método científico.
Havia obviamente lacunas imensas no trabalho de Arrhenius que viriam a ser preenchidas depois. Não havia, por exemplo, pistas sobre o que poderia disparar glaciações ou deglaciações e fazer o CO₂ variar, até os trabalhos de Milankovitch (que propôs que variações cíclicas nos parâmetros da órbita terrestre de excentricidade, obliquidade e precessão serviriam de marcapasso climático na escala de dezenas a centenas de milhares de anos). Importante dizer que Milankovitch também enfrentou resistência na aceitação de suas teses, até porque o impacto no balanço de energia da Terra por conta desses ciclos é muito pequena para explicar variações tão grandes no clima como as que ocorrem entre glaciações e desglaciações. Hoje sabemos: Milankovitch e Arrhenius tinham, ambos, parte da verdade em mãos. O primeiro descobriu o gatilho. O segundo, o mecanismo amplificador.
Epiciclos Negacionistas
Enquanto todo esse debate acontecia, desde 1880, quando foi estruturada uma rede de observações de superfície em escala mundial, dados estavam sendo coletados. E em 1938, Guy Callendar, novamente com um enorme esforço braçal (não havia planilhas de Excel naquele tempo...), encontrou as primeiras evidências nesses dados de que o planeta estava aquecendo, como já mostramos em nosso blog. Ele estimou que, naquele momento, parte do aquecimento observado era natural, mas atribuiu corretamente a outra parcela ao efeito antrópico. As previsões de Arrhenius, de mais de 30 anos antes, já estavam se confirmando. Importante lembrar, aliás, Callendar subestimava o ritmo das mudanças nos anos seguintes (não previu o crescimento exponencial do uso de combustíveis fósseis, que acelerou em muito as emissões) e tinha ilusões de que, pelo menos em parte, elas pudessem ser benignas ou mesmo benéficas.
Este, aliás, é outro "debate" já totalmente superado, pois sabemos que em áreas como a agricultura a tendência geral é que os problemas associados ao aumento da temperatura e da evapotranspiração potencial, bem como os desequilíbrios associados ao ciclo hidrológico superam em muito quaisquer possíveis benefícios que o aumento da concentração de CO₂ atmosférico possa ter sobre a fotossíntese, algo que abordamos neste vídeo. Fica a dica: se vocês prestarem atenção, verão que os "argumentos" negacionistas ou são mentiras deslavadas ou debates há muito superados.
Os epiciclos de Ptolomeu. Apegados a ideias tão ultrapassadas quanto falsas, os negacionistas estariam, na verdade, do lado da Inquisição, nunca do lado de Galileo. |
Negacionismo é pseudociência criada "em laboratório"
De Fourier até o IPCC, muito avançamos: observações diversas, satélites, supercomputadores com modelos, testemunhos paleoclimáticos. São dois séculos de conhecimento científico acumulado. Enquanto os negacionistas rodam em epiciclos, hoje sabemos que o sistema climático terrestre depende de maneira fundamental de um balanço de energia e uma condição próxima do equilíbrio requer que a quantidade de energia saindo do sistema, na forma de calor, ou mais especificamente de radiação infravermelho para o espaço, seja equivalente à quantidade de energia que entra, vinda do Sol. Daí, qualquer processo físico que interfira significativamente nesse balanço ocasionará uma mudança no clima e ao se analisar todos os possíveis fatores, descartamos os fatores naturais (mudanças de atividade solar, vulcanismo, mudanças cíclicas nos parâmetros orbitais, variabilidade interna de longo prazo). Ao mesmo tempo, verificamos que a mudança na concentração de gases de efeito estufa (principalmente CO₂, mas também metano, óxido nitroso e halocarbonetos) que se iniciou com o período industrial e se intensificou muito após a segunda metade do século 20, é capaz de produzir um desequilíbrio energético estimado em 2,29 Watts por metro quadrado (o que multiplicado pela área do planeta nos dá uma energia maior que a explosão de 18 bombas de Hiroshima por segundo).
A causa fundamental, portanto, do aquecimento observado no clima terrestre, sem margem para dúvidas, é a emissão antrópica desses gases. Destaca-se a queima de combustíveis fósseis, agravada por desmatamento, emissões de agropecuária etc. As consequências, boa parte delas já perceptível e com a devida aferição estatística, inclui uma maior frequência de eventos extremos (ondas de calor, tempestades severas, incêndios florestais etc.), perda de massa das geleiras e mantos de gelo, elevação do nível do mar, comprometimento de ecossistemas terrestres e marinhos (vide o branqueamento de corais), extinção de espécies.
Mais do que isso. Mesmo nesse terreno não há "geração espontânea". As larvas negacionistas não brotaram simplesmente da carne podre. Houve quem colocasse os ovos. O negacionismo se trata de um "produto de laboratório" de corporações, como a Exxon, e think tanks dos EUA, que há mais de 20 anos mimetizaram a estratégia da indústria do tabaco que sabotou por um longo tempo as medidas de restrição ao fumo. O padrão é exatamente o mesmo: para defenderem seus lucros, atacam o consenso científico, recrutando algumas figuras do meio acadêmico e da mídia, confundem e desmobilizam a opinião pública, agindo como verdadeiros mercadores da dúvida. Existe farta documentação mostrando não apenas os vínculos entre o negacionismo e esses interesses econômicos escusos, mas inclusive que se tratou de algo pensado, elaborado, com tática e orçamento. Já abordamos este tema anteriormente, com links para farto material que evidencia o tamanho da fraude e da calhordice do negacionismo.
Daí, como mentirosos que são, detratores da ciência, os negacionistas nada têm a ver com Galileo. Eles, na verdade, são a Inquisição, tanto no campo das ideias, ao insistirem em mitos e se recusarem a aceitar as evidências que os desmentem, quanto no campo da aliança com o poder constituído, ao serem turbinados pela indústria petroquímica e outros setores econômicos (no Brasil, há larga evidência de aproximação com o agronegócio), além dos seus vínculos com a extrema-direita em nível global. Então, que exijamos respeito à ciência e à figura de Galileo Galilei e não aceitemos que vilões canalhas e desonestos posem de vítima.
Muito esclarecedor.
ResponderExcluirObrigada por compartilhar seus conhecimentos.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirComentei no face, vou comentar aqui tbm, mas sobre outro ponto. Vc afirma: "Ficou comprovado desde então que há gases, como o CO₂ e o vapor d'água, que absorvem radiação infravermelho. Hoje, é um experimento trivial, que pode ser repetido em laboratório com montagens bastante simples e didáticas, como neste vídeo."
ResponderExcluirEsse vídeo é muito ruim, ele nem de longe simula as condições climáticas terrestres, achei até estranho vc colocá-lo como referência, sendo assim, pergunto: existe algum experimento elaborado onde a atmosfera terrestre é minimamente reproduzida e obteve-se aumento de temperatura com aumento de CO2? Algum onde foi realizado testes de temperatura com diferentes concentrações de co2 (200, 500, 800, 1000 ppm)? Já li alguns artigos onde esses experimentos são realizados para avaliar crescimento de plantas, não existiria algum para obter dados de temperatura?
Sr Barbosa, o vídeo é excelente a mostrar o que o professor Araújo diz antes de o citar, i.e. que o CO₂ absorve o infravermelho. Nada mais, e nada menos.
ResponderExcluirOlha uma boa referência de divulgação científica do tema: cienciaeclima.com.br
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