Galileo Galilei (1564-1642) sofreu a fúria da Inquisição por sustentar um ponto de vista baseado em evidências contra os que queriam negá-las. Quem é Galileo na guerra do clima, afinal? |
Em meio à câmara de ecos
As redes sociais criaram um ambiente único, sem precedentes, nos quais a possibilidade de produção e replicação de informação se multiplicou imensamente, seja ela fundamentada ou não na realidade, baseada ou não em abordagem honesta etc. Atribui-se ao ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, a frase “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, o que nos deixa a imaginar o que ele diria se a mentira pudesse ser repetida não mil mas milhões de vezes...
O célebre tweet de Trump dizendo que o aquecimento global foi "criado pelos chineses" para atrapalhar a indústria dos EUA |
O que acontece, portanto, é que na era
das redes sociais, o negacionismo voltou a ganhar fôlego. Como em outras
bizarrices ("Terra plana", "nazismo de esquerda" etc.), as
redes terminam servindo de câmara de eco. Isso afasta, portanto, o público da
arena dos verdadeiros debates que deveriam estar sendo feitos: de contenção
das emissões, ou seja, de mitigação, e de como preparar melhor a sociedade para
lidar com riscos e impactos, reduzindo a vulnerabilidade, ou seja, adaptação.
Ao semearem confusão, os negacionistas cumprem o papel deletério que desde o
seu nascedouro, nas conspirações travadas por grupos ultraconservadores com
participação da indústria fóssil, sempre lhe coube: manter a sociedade presa a
falsos debates, travar as ações e soluções. E na medida em que grupos dessa
ultradireita em ascensão se apropriam do discurso negacionista (o que inclui além
de Trump e da "alt-right" nos EUA, os neonazistas
alemães do AfD e grupos como a TFP no Brasil), eles o amplificam e o
misturam a discursos de ódio, racismo e xenofobia.
Aqui no Brasil, a mais famosa entrevista de um negacionista na TV, concedida pelo Sr. Ricardo Felício a Jô Soares, aparece em vários arquivos no YouTube, sendo que uma das versões possui mais de um milhão de visualizações. Tendo travado contato com esse filão, o mesmo sujeito aparece sendo entrevistado em canais da ultradireita política contabilizando centenas de milhares de visualizações em vários desses vídeos. Molion também recebeu um número grande de visualizações nessa mesma rede social, com pelo menos 16 vídeos tendo sido assistidos por algo entre 10 mil e 100 mil pessoas cada um. Que não se subestime o estrago que isso pode fazer, especialmente quando cientistas de conduta, produtividade e competência num patamar infinitamente superior como Paulo Artaxo e Carlos Nobre não gozam de uma popularidade minimamente comparável nas redes. Ai se não fossem divulgadores científicos como Pirula, por exemplo.
Aqui no Brasil, a mais famosa entrevista de um negacionista na TV, concedida pelo Sr. Ricardo Felício a Jô Soares, aparece em vários arquivos no YouTube, sendo que uma das versões possui mais de um milhão de visualizações. Tendo travado contato com esse filão, o mesmo sujeito aparece sendo entrevistado em canais da ultradireita política contabilizando centenas de milhares de visualizações em vários desses vídeos. Molion também recebeu um número grande de visualizações nessa mesma rede social, com pelo menos 16 vídeos tendo sido assistidos por algo entre 10 mil e 100 mil pessoas cada um. Que não se subestime o estrago que isso pode fazer, especialmente quando cientistas de conduta, produtividade e competência num patamar infinitamente superior como Paulo Artaxo e Carlos Nobre não gozam de uma popularidade minimamente comparável nas redes. Ai se não fossem divulgadores científicos como Pirula, por exemplo.
A recusa em aceitar uma realidade ruim é uma reação comum. Mas o correto é trabalhar para superá-la. A exploração dessa reação é um dos traços gritantes de má fé do negacionismo. |
Evidentemente os negacionistas atingem as pessoas em geral num ponto fraco. Ninguém gosta de ouvir más notícias (e nesse sentido tampouco é aprazível ser justamente o portador da má notícia, como é o caso de nós que compomos a comunidade científica de clima). A mentira reconfortante de que "não há com o que se preocupar", de que "vai ficar tudo ok" soa muito mais agradável, ao dialogar com uma reação absolutamente comum diante de um evento ruim: a denegação.
Mais do que isso, a expectativa de que é possível para uns seguir com seu estilo de vida de altas emissões de carbono - e para os demais almejá-lo - encaixa perfeitamente no discurso ideológico ultraliberal de "prosperidade", de solução individual, de "meritocracia", etc. tão bombardeado nas redes. Óbvio: é inteiramente irracional que se inverta a ordem das coisas desta forma, isto é, que já que uma realidade física pode colocar em xeque aspectos de minha opção ideológica, ao invés de reavaliar e repensar tal opção (ou para rejeitá-la por completo ou pelo menos para revisar alguns aspectos dela), eu passe a negar o mundo material ao meu redor e o conhecimento científico sobre o seu funcionamento. Mas humanos raramente são bons exemplos, de tomada de decisão racional, certo Sr. Spock?
Qual o motivo pelo qual negacionistas não publicam nem aprovam projetos? Seria "perseguição"?
É justamente o apelo emocional e o autoposicionamento na condição de vítima que caracteriza, assim, a fraude da tentativa dos negacionistas de se identificarem com Galileo, mas como demonstramos, no campo das ideias, eles são, na verdade, a Inquisição. Afinal, insistem em mitos e se recusam a aceitar as evidências
que os desmentem. Mas não só. No campo da aliança com o poder constituído também: assim como a Inquisição estava associada ao vínculo da Igreja com o Estado, os negacionistas são
turbinados pelo andar de cima, mais especificamente pela indústria petroquímica e outros setores (além dos seus vínculos
com a extrema-direita em nível global, no Brasil há larga evidência de
aproximação com o agronegócio). Então, que exijamos respeito à ciência e à
figura de Galileo Galilei e não aceitemos que vilões canalhas e desonestos
posem de vítima.
Mas dito isto, como lidar com as acusações de que eles têm
sido "censurados" ou impedidos de ganharem projetos de pesquisa e
publicarem em periódicos científicos? O que fazer quando eles reivindicam "espaços de debate" em eventos científicos ou espaços da sociedade
civil voltados para a formulação de políticas públicas sobre as mudanças
climáticas?
Primeiro, a acusação de que "só há financiamento para
pesquisas que 'querem comprovar' as mudanças climáticas" e não haveria
financiamento para questioná-las é para lá de falsa. Novamente só cola porque
em geral as pessoas não sabem como funciona a produção científica. Primeiro,
num projeto, não é possível antecipar (pelo menos não totalmente) os
resultados, então nesse sentido seria impossível, a priori, separar projetos
que visassem "comprovar" ou "questionar" as mudanças
climáticas. Todos eles seriam (e são, de fato) projetos para estudar o
clima, suas alterações e as causas físicas destas alterações e o compromisso da
comunidade científica é justamente obter resultados, reportá-los - quaisquer
que sejam - e apresentar conclusões baseadas nas evidências, quer elas
corroborem as hipóteses iniciais ou não.
Segundo, em geral os projetos de pesquisa são focados em
aspectos bastante particulares e específicos do clima. Ninguém se propõe a
estudar "tudo", sozinho ou num grupo de pesquisa, pois não seria
apenas contraproducente. É impossível mesmo, dada à quantidade de informação envolvida! Para chegar a conclusões mais gerais, montando as peças do quebra-cabeça, é que são
feitos os trabalhos de revisão da literatura, tendo sido este o principal papel
cumprido pelo próprio IPCC e outros painéis de clima (como o Painel Brasileiro,
o PBMC e os responsáveis, nos EUA, pela publicação dos relatórios nacionais,
como o que foi publicado
há poucos dias). Em virtude disso, haveria um grande número de
oportunidades para pesquisadores sérios que, mesmo partindo de um
questionamento das conclusões gerais sobre as mudanças climáticas defendida
pela ampla maioria, estivessem dispostos a examinar seriamente algum tópico
específico. Será que aceitariam o desafio de, nesse processo, aceitar quaisquer
que fossem as evidências que sua pesquisa lhes mostrasse a respeito daquele assunto e como o mesmo se conecta ao quadro científico mais geral?
num caso já relatado em nosso blog. Mas houve quem não fez questão de esconder que estava sendo bancado por essa indústria para questionar a qualidade do registro histórico de temperatura à superfície (trabalhado por vários institutos e agências de pesquisa como NASA, NOAA e Hadley Centre e apresentado como uma das evidências mais expressivas do aquecimento global): Richard Muller, de Berkeley.
Muller é um físico prestigiado e cujo grupo de pesquisa se deu ao trabalho de reconstruir, do zero, a base de cálculo da temperatura média global na superfície num projeto denominado BEST (Berkeley Earth Surface Temperature). Dando a César o que é de César, devemos admitir que a base de dados montada pelo grupo de Muller é maior e possivelmente até mais robusta do que a GHCN (Global Historical Climatology Network), na qual se baseiam as instituições anteriormente mencionadas para levantar as suas séries temporais de temperatura. Mas o resultado ficou marcadamente parecido, apenas confirmando o que nós, da nossa comunidade, já sabíamos: primeiro, que o dado de temperatura da superfície é confiável e segundo, que o planeta está aquecendo num ritmo cada vez mais acelerado, especialmente desde as três últimas décadas do século passado. Uma das consequências de tudo isso foi que Muller hoje se diz um "convertido", servindo do melhor exemplo de diferença entre um cético (alguém que tem de fato uma dúvida - seja esta justificada ou não - mas que corre atrás de evidências para dirimi-la, aceitando-as para onde quer que elas apontem) e um negacionista (aquele que se recusa a aceitar evidências a fim de preservar seu sistema de crenças). A outra consequência é que Muller não foi capaz de publicar seu resultado, pela ausência de originalidade, em periódicos de maior prestígio em meteorologia, tendo de se contentar em ver seus dados BEST no Geoinfor Geostat. Até o total de artigos advindos do projeto ficou muito aquém do esperado para algo da magnitude inicialmente imaginado, como se pode constatar no próprio site.
Muller é um físico prestigiado e cujo grupo de pesquisa se deu ao trabalho de reconstruir, do zero, a base de cálculo da temperatura média global na superfície num projeto denominado BEST (Berkeley Earth Surface Temperature). Dando a César o que é de César, devemos admitir que a base de dados montada pelo grupo de Muller é maior e possivelmente até mais robusta do que a GHCN (Global Historical Climatology Network), na qual se baseiam as instituições anteriormente mencionadas para levantar as suas séries temporais de temperatura. Mas o resultado ficou marcadamente parecido, apenas confirmando o que nós, da nossa comunidade, já sabíamos: primeiro, que o dado de temperatura da superfície é confiável e segundo, que o planeta está aquecendo num ritmo cada vez mais acelerado, especialmente desde as três últimas décadas do século passado. Uma das consequências de tudo isso foi que Muller hoje se diz um "convertido", servindo do melhor exemplo de diferença entre um cético (alguém que tem de fato uma dúvida - seja esta justificada ou não - mas que corre atrás de evidências para dirimi-la, aceitando-as para onde quer que elas apontem) e um negacionista (aquele que se recusa a aceitar evidências a fim de preservar seu sistema de crenças). A outra consequência é que Muller não foi capaz de publicar seu resultado, pela ausência de originalidade, em periódicos de maior prestígio em meteorologia, tendo de se contentar em ver seus dados BEST no Geoinfor Geostat. Até o total de artigos advindos do projeto ficou muito aquém do esperado para algo da magnitude inicialmente imaginado, como se pode constatar no próprio site.
Aliás, sem querer fazer apologia do produtivismo acadêmico, mas tendo falado em número de artigos, já ocorreu a vocês que o fato de que os negacionistas em
geral não publicam em periódicos revisados e não aprovam projetos
poderia ser simplesmente incompetência? E que por mais que isso signifique chamar atenção para si de forma distorcida, para não falar dos casos em que há benefício econômico direto, a motivação para ir à mídia e às redes questionando praticamente todo o resto da comunidade nada tem a ver com uma conduta ética superior à desta, mas pode se originar de uma vaidade exacerbada e de algum tipo de frustração?
Palavras finais sobre "censura" e "democracia"
Nesse contexto, ninguém propõe que os negacionistas sejam
"censurados". Eles, como quaisquer pessoas, podem dizer a sandice que
quiserem (com a exceção de discursos de incitação ao ódio) e o fato de terem
sistematicamente se dirigido à mídia e ocupado as redes sociais é o próprio
exercício desse direito.
Mas ciência não se faz com qualquer "opinião". Não se pode querer que o método e a produção científicos e a revisão por pares sejam abandonados para acomodar o desejo desse punhado de manipuladores. É preciso seguir as regras do debate científico, que se dá por meio da literatura revisada, com o escrutínio de outros cientistas e não em arenas que imitam os debates eleitorais, em que a liberdade para mentir sem apresentar provas é enorme e a performance se sobrepõe em geral à honestidade intelectual.
Há uma noção completamente equivocada a respeito de como se dá esse debate. As pessoas têm a impressão de que em ciência fazemos debates como os eleitorais, que em geral são concursos de performance e nos quais o compromisso com a verdade por parte dos debatedores deixa muito a desejar. O debate científico é feito por meio da revisão por pares, ou seja, via literatura científica. É desse jeito mesmo: chato, tedioso, em geral não é ingrediente para meme. Mas é desse jeito que se pode ter algo realmente construtivo, corrigindo erros, checando evidências, melhorando interpretações etc. Está longe de ser perfeito, mas é muito mais efetivo do que o "telecatch de oratória" que as pessoas tanto apreciam.
Aliás, uma tática que precisa ser explicitada dos negacionistas é justamente querer conduzir a todos nós (especialmente colegas que não têm "traquejo") para esse ambiente tóxico e contraproducente. Evitar esse tipo de armadilha é basilar. O tipo de "debate" no qual os negacionistas insistem não apenas favorece a forma em detrimento do conteúdo. Ele abre espaço para a "assimetria de Brandolini": "The amount of energy needed to refute bullshit is an order of magnitude bigger than to produce it" (A quantidade de energia necessária para refutar besteiras é uma ordem de magnitude maior do que para produzi-las).
movimento antivacinação" é inadmissível pensar que a política para clima seja baseada em qualquer que seja a "opinião" que se queira, "a gosto do freguês" ou em "ouvir os dois lados" quando o peso das evidências está todo junto a um deles. Assim como não se pode absolutizar a "liberdade de expressão" quando neonazis apelam a ela para proferirem discurso de ódio, genocídio e extermínio, não podemos ceder à chantagem e à manipulação, fragilizando a tomada democrática de decisão por parte do poder público dando pesos iguais a orientações fundadas na ciência e a discursos que a negam.
Mas ciência não se faz com qualquer "opinião". Não se pode querer que o método e a produção científicos e a revisão por pares sejam abandonados para acomodar o desejo desse punhado de manipuladores. É preciso seguir as regras do debate científico, que se dá por meio da literatura revisada, com o escrutínio de outros cientistas e não em arenas que imitam os debates eleitorais, em que a liberdade para mentir sem apresentar provas é enorme e a performance se sobrepõe em geral à honestidade intelectual.
Há uma noção completamente equivocada a respeito de como se dá esse debate. As pessoas têm a impressão de que em ciência fazemos debates como os eleitorais, que em geral são concursos de performance e nos quais o compromisso com a verdade por parte dos debatedores deixa muito a desejar. O debate científico é feito por meio da revisão por pares, ou seja, via literatura científica. É desse jeito mesmo: chato, tedioso, em geral não é ingrediente para meme. Mas é desse jeito que se pode ter algo realmente construtivo, corrigindo erros, checando evidências, melhorando interpretações etc. Está longe de ser perfeito, mas é muito mais efetivo do que o "telecatch de oratória" que as pessoas tanto apreciam.
Aliás, uma tática que precisa ser explicitada dos negacionistas é justamente querer conduzir a todos nós (especialmente colegas que não têm "traquejo") para esse ambiente tóxico e contraproducente. Evitar esse tipo de armadilha é basilar. O tipo de "debate" no qual os negacionistas insistem não apenas favorece a forma em detrimento do conteúdo. Ele abre espaço para a "assimetria de Brandolini": "The amount of energy needed to refute bullshit is an order of magnitude bigger than to produce it" (A quantidade de energia necessária para refutar besteiras é uma ordem de magnitude maior do que para produzi-las).
movimento antivacinação" é inadmissível pensar que a política para clima seja baseada em qualquer que seja a "opinião" que se queira, "a gosto do freguês" ou em "ouvir os dois lados" quando o peso das evidências está todo junto a um deles. Assim como não se pode absolutizar a "liberdade de expressão" quando neonazis apelam a ela para proferirem discurso de ódio, genocídio e extermínio, não podemos ceder à chantagem e à manipulação, fragilizando a tomada democrática de decisão por parte do poder público dando pesos iguais a orientações fundadas na ciência e a discursos que a negam.
Bom dia, professor Alexandre Costa. Acompanho sempre seu blog.
ResponderExcluirMinha família herdou um terreno de 25 hectares de mata atlântica em Viçosa do Ceará.
Eu o conhecia deste o tempo de menino, mas não o via há uns dez anos.
Quando fui ver o terreno agora, tive um espanto: um riachinho perene, que sempre existira e sempre correra, secou.
O vizinho que cuida do terreno diz que o riacho agora só corre no inverno. Diz que isso se deve a que agora tem muito poço profundo na Chapada (como eles chamam a parte de cima da serra).
Estou desorientado. Gostaria de saber o que aconteceu e o que se pode fazer. O senhor poderia conversar comigo a respeito? Poderia me dar seu e-mail? Ou escrever para o meu: paemail-geral@yahoo.com.br.
Desde já agradeço.
Paulo Avelino
Fortaleza