Quase 500 mortes confirmadas e
mais de 600 pessoas ainda desaparecidas. É o saldo terrível dos deslizamentos
ocorridos em Serra Leoa nos últimos dias. A pouca atenção da mídia internacional
à catástrofe em si faz com que o silêncio paire ainda mais absoluto sobre dois
aspectos intrinsecamente ligados a ela: a
pobreza e as mudanças climáticas.
Serra Leoa é o país de menor
expectativa de vida do mundo: 50,1. É também o 178o menor PIB
per capita segundo a ONU e o 9o menor Índice
de Desenvolvimento Humano. Seus habitantes emitem uma quantidade
insignificante de gases de efeito estufa: apenas 0,2 toneladas por habitante
por ano, uma pegada 12,5 vezes menor do que um “brasileiro médio” e mais de 80
vezes menor do que a média de quem mora nos EUA.
Deslizamentos mataram centenas de pessoas e deixaram muitos milhares de desabrigados, além de comprometer a já precária infraestrutura, inclusive de saúde. |
O país, como infelizmente
esperado, sempre apareceu entre aqueles mais vulneráveis e menos preparados
diante das mudanças climáticas em estudos especializados. É o caso do índice ND-Gain,
bem menos popular que o PIB ou o IDH, mas nem por isso menos importante. O
ND-Gain combina uma série de fatores, que incluem a exposição e o potencial de
impacto climático sobre ecossistemas, saúde humana, infraestrutura, acesso a
água e alimentos, a capacidade adaptativa do país, os recursos econômicos, a
governança e a consciência social para enfrentar o problema. Nele, Serra Leoa
fica em 153o lugar de 181 países analisados. O país é penalizado, no
cálculo do índice, principalmente pela baixíssima capacidade adaptativa e pelos
riscos postos ao ambiente humano, à saúde e à disponibilidade de alimentos.
Que os índices de pobreza fazem de
Serra Leoa um país particularmente vulnerável parece não haver dúvidas, mas não
seria precipitado apontar também o dedo para as mudanças climáticas? Não se
trata apenas de um “fenômeno natural”?
Ok, não é tão simples assim.
Ninguém irá ser capaz de dizer que “a causa” dos deslizamentos de terra em
Serra Leoa, assim como da onda de calor que se abateu sobre a Europa ou das
6000 vidas ceifadas pelo tufão Haiyan, nas Filipinas, há quase 4 anos. Mas uma
relação causal existe, até porque todo e qualquer processo meteorológico hoje é
afetado pela presença de mais gases de efeito estufa ou, em outras palavras, a
atmosfera não funciona do mesmo jeito com 400 ppm de CO2. O que
acontece, porém, é que essa mudança de comportamento é probabilística.
Primeiro, é preciso entender que
eventos pouco prováveis não apenas acontecem como na verdade se nos expusermos
ao fenômeno um número suficientemente grande de vezes é quase inevitável que
ele aconteça. Se lançarmos simultaneamente 4 dados, a chance de obter 6 em todos
eles é de apenas uma em 1296, mas repetindo o lançamento simultâneo algumas
centenas de vezes, a probabilidade de que isso aconteça deixa de ser pequena
(em 500 lançamentos, a chance de obter pelo menos uma vez o 6 em quatro dados
já é de aproximadamente uma em três). E o que dizer de eventos ainda menos
prováveis, como é o caso de alguém ganhar na mega-sena? As chances de um
ganhador individual são pífias, mas como há milhões de jogadores, o prêmio não
acumula ad eternum (a maior sequência
de sorteios sem ganhador foi de 12, em 2002).
Quando probabilidades viram
eventos reais, clima vira tempo e vulnerabilidade vira morte, o termo tragédia
anunciada é o que me vem à cabeça. Como há muito venho mostrando na academia,
em palestras e nas redes sociais, um planeta mais quente terá um clima de
extremos. É decorrência imediata da Física por trás da chamada "equação de
Clausius-Clapeyron": a atmosfera, transformada em um maior reservatório de
vapor d'água, produz(irá) tanto secas mais severas quanto tempestades mais
violentas. É como viciar um dado ou uma roleta mortais, aumentando a
probabilidade de desfechos trágicos nessa ininterrupta loteria climática. A
relação entre eventos extremos e aquecimento global é mediada pela mudança nos
mecanismos físicos que regem a sua probabilidade de ocorrência.
A repetição, no caso de uma catástrofe
como a que se abateu sobre Serra Leoa, é nada mais nada menos do que um dia
vivido atrás do outro, uma nuvem de chuva formada após a outra, até que uma
delas se transforme em uma tempestade severa e que esta despeje uma enxurrada e
produza um deslizamento justamente onde há um assentamento humano populoso e
vulnerável. Há indícios na literatura científica de que uma elevação em 18% nos
extremos diários de precipitação já possa ser atribuída ao aquecimento global,
sendo que este número deve se elevar a pelo
menos 40% mesmo no “limite seguro” (e põe aspas nisso) de 2°C.
Que futuro disputamos? O do abandono dos pobres a catástrofes climáticas cada vez mais recorrentes ou o acolhimento de todos e todas como irmãos e irmãs que somos? |
E precisa dizer que numa sociedade
desigual alguns sofrem mais, imigram mais, adoecem mais, morrem mais? Que num
mundo com secas e tempestades mais frequentes e mais intensas os mais ricos, os
habitantes dos países mais desenvolvidos terão bem melhores condições de lidar
com tal clima inóspito? Que os impactos das mudanças climáticos vêm permeados
de racismo, desigualdade de classe e até de gênero? Que a sociedade precisa
assegurar, em contraposição a esse cenário distópico, mudanças que vão desde a
alteração radical da matriz energética e do padrão de consumo ao acolhimento
muito mais generoso e resoluto de refugiados de guerra e climáticos?
Uma última palavra, para não
deixar passar em brancas nuvens o conflito aberto no qual me envolvi nas
últimas semanas. Num contexto tão tristemente ilustrado pela tragédia em Serra
Leoa, o negacionismo se torna claramente uma espécie de negligência coletiva,
organizada, militante. Não apenas a recusa em se engajar em solucionar a
questão, mas a sabotagem ativa da consciência social, a opinião pública e as
tomadas de decisão faz do negacionismo algo nocivo, daninho e perverso; uma perfeita
dobradinha do mal com o fascismo e racismo xenófobos que erguem muros e atacam
negros, indígenas e imigrantes.
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