Nas últimas duas semanas pensei várias vezes na frase
“quanto mais rezo, mais assombração me aparece”. Daí lembrei que, como bom
ateu, nem rezo nem deveria acreditar em assombração.
Mas com efeito, certas assombrações do mundo real existem e
são, além de teimosas, nocivas. Há diversas pragas anticientíficas, incluindo o
criacionismo, a negação de que o homem tenha ido à Lua, o movimento antivacina
e até o terraplanismo, mas o negacionismo climático é certamente a mais prejudicial.
Envolve vínculos econômicos poderosíssimos (como mostramos em artigo na Revista Vírus) e
chegou à presidência da nação mais poderosa do planeta através de Trump, o Nero Laranja. Diferente
de outras fraudes anticiência, o negacionismo climático incide sobre políticas
públicas e o faz justamente quando sabemos que as consequências da inação serão
profundas e duradouras quanto mais seguirmos com os “negócios como sempre”.
Deixar de adotar, no ritmo e escala necessária, as medidas imperiosas
para conter o aquecimento global (abandonar os combustíveis fósseis,
revolucionar a produção e o transporte, alterar padrões de consumo e até mesmo
modificar a dieta) é, em si, trágico. Mas fazer isso e ao mesmo tempo negar a
realidade com teorias de conspiração acrescenta um elemento surpreendente de
ridículo. É tragédia e farsa ao mesmo tempo, cinema catástrofe com
pornochanchada.
Não chega a ser surpresa que a bufonaria de Trump de nomear
um negacionista atrás do outro para seu 1o e 2o escalões tenha
ganho aplausos de setores da extrema direita brasileira. E aí, o que acontece
nessa hora? Os negacionistas brazucas, que estavam relegados a uma boa dose de
ostracismo, voltam a ganhar visibilidade, especialmente turbinados pelas redes
sociais.
Como zumbis, os mitos do negacionismo (bem como seus porta-vozes) insistem em retornar. Mas a gente enfrenta... |
Foi o caso especialmente de Ricardo Felício, professor de
Geografia da USP, que numa sequência de eventos, apareceu em “O
Antagonista” e pelo menos duas vezes em um canal bastante popular da
internet que divulga posições radicais de direita: em entrevista e num vídeo “solo”. Ricardo Felício,
ao lado de Luís Carlos Molion (aposentado do INPE e professor de Meteorologia
da UFAL), é a maior celebridade negacionista por estas bandas desde que foi
catapultado por uma entrevista concedida há 5 anos a Jô Soares.
Molion, palestrando para o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, fachada da ultra-reacionária TFP. |
Os vínculos de ambos com setores políticos conservadores e
ultraconservadores é antigo, como havia dissecado em
meu blog há bastante tempo, mas se aprofundaram desde então. Molion seguiu
apoiando os setores mais chucros do agronegócio (sim, porque os mais “modernos”
não ignoram as mudanças climáticas, pelo contrário, contam com pesquisas em
transgênicos e planejam até compras de terras em outras localidades para
moverem culturas inteiras) e chegou até mesmo a participar de eventos da
arqui-reacionária TFP (Tradição, Família e Propriedade) e seu instituto (o
IPCO), sendo tratado
como celebridade no site do mesmo.
Já Felício busca surfar na onda direitista, incluindo não
apenas as aparições que mencionei, mas o ensaio de uma aproximação com o MBL, o
que faria todo sentido dadas as evidências de vínculo entre o referido
movimento e os Irmãos Koch, bilionários da indústria fóssil dos EUA, como
mostra o periódico britânico The Guardian. Felício deve estar percebendo
que especialmente a juventude que é carreada por essa onda anseia estabelecer
laços de identidade, de pensamento comum, ainda que o mesmo seja desconectado
da realidade. No amálgama, entram afirmação do machismo, racismo e xenofobia
sob a roupagem de combate ao “politicamente correto”, antipetismo visceral que
se espalha para toda a esquerda (que inclui não só o PSOL, o PCdoB, etc., mas
em algumas versões do delírio inclui até o PSDB!) e doses cavalares de burrice
(ou seriam doses asininas de “cavalice”) sobre temas os mais diversos,
inclusive aqueles em que a polarização política não deveria ter espaço.
Sim, porque – vejam só! – existem coisas que estão além do
domínio da política, em particular desse varejo de baixo nível das redes
sociais. A questão climática no que diz respeito aos aspectos físicos é uma delas. Não falo aqui das injustiças
sociais associadas às mudanças climáticas ou às disputas em torno de decisões
sobre tecnologias, economia, etc. que têm, por óbvio, a política como questão
central. Mas falo de fatos simples, básicos, como a molécula de CO2
absorver radiação infravermelho. É uma molécula que existe há bilhões de anos e
cujas propriedades físico-químicas são as mesmas desde sempre, quando não havia
nem humanos, nem política nem seguidores de Olavo de Carvalho (tempos bons,
aqueles) e que, portanto, não interessa se tiver sido lançada à atmosfera pelo
governo venezuelano ou pela Exxon. Seu impacto na atmosfera vai ser o mesmo,
isto é, intensificar o efeito estufa. Coisas óbvias como “não existe CO2
de esquerda ou CO2 de direita”, aliás, estão tendo de ser ditas para
“limpar o meio de campo”, para vocês verem a que ponto chegamos. Mas na
insanidade das redes, o IPCC, a NASA, a NOAA e todos os cientistas estariam
mesmo é participando de uma “conspiração globalista”...
Trofim Lysenko, biólogo e agrônomo ucraniano. promoveu, durante o governo de Stalin, uma verdadeira cruzada contra a Genética de Mendel. |
Nesse contexto, o colega Michael Mann, lembrou, em seu
Twitter, da semelhança entre a falsa “politização” que a direita quer impor
sobre a Ciência do Clima e a “genética proletária” de Lysenko, sob o governo de
Stalin (sim, além de genocida e assassino dos próprios correligionários,
o stalinismo também tem uma “pegada” de pseudociência ou anticiência, vide... o
negacionismo
de Aldo Rebelo). Essa semelhança entre o modo de pensar dos vários
negacionistas é que faz com que surjam teorias conspiratórias que se anulam
umas às outras, afinal não é possível que o aquecimento global seja ao mesmo
tempo uma “farsa criada pelos chineses para prejudicar os EUA” (Trump) e uma
“farsa criada pelos EUA para prejudicar os países em desenvolvimento” (Aldo e
negacionistas “de esquerda”).
Felizmente algumas pessoas têm se mobilizado para desmontar
as posições fraudulentas disfarçadas de ciência que os negacionistas têm difundido,
até para compensar a pouca disposição demonstrada pela comunidade científica de
comunicar sobre as mudanças climáticas para o grande público. É o caso de
canais do YouTube de divulgação científica, como o Canal do Pirula que já
publicou vários vídeos sobre o tema, incluindo várias refutações às falácias de
Ricardo Felício e outras pessoas (o canal “Nerdologia”, por exemplo, produziu
um vídeo muito didático e
de excelente qualidade visual). Eu mesmo terminei me sentindo obrigado a,
além do trabalho que já faço por meio do blog e da fanpage no Facebook,
publicar uma sequência de vídeos desfazendo os nós das mentiras mais recentes
do Sr. Felício que já está na terceira parte (os links
para as duas primeiras partes estão na descrição deste).
Em meu canal do YouTube, estou dis- ponibilizando vários vídeos. Confiram! |
O que não podemos ter é a ilusão de que ao entrar nesse
“debate” seja possível, apresentando evidências científicas e argumentos
racionais, convencer os negacionistas de que eles estão errados. Não, isso é
impossível, pois eles sabem que estão
errados. Sua agenda não é “vencer o debate”, mas semear a suspeição,
confundir a opinião pública, impedir uma tomada de consciência que venha a dar
suporte a políticas públicas de enfrentamento ao aquecimento global. São
“mercadores da dúvida”, que repetem estratégias já adotadas outrora pela
indústria do tabaco, que queria desesperadamente esconder as evidências de
vínculo entre fumo e câncer. Nossa entrada nessa arena suja, que repele a participação
da maioria dos cientistas (vide a exposição
pública de minha pessoa), a lógica é ser didático, dialogar com quem tem
dúvida, isolar o fanatismo e a guerra de torcidas e ter, como já mencionou um
colega, um estômago de crocodilo.
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