sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Apostar em futuras tecnologias de CCS: um erro que pode nos custar o próprio futuro.

3 anos seguidos de quebra de
recorde de temperatura global
praticamente puseram fim ao
negacionismo climático
Posso estar enganado, mas parece estar acontecendo um certo deslocamento na cortina de fumaça em relação à crise climática. Estou sentindo que o negacionismo mais tradicional (e mais estúpido) está perdendo fôlego. Até porque não apenas as evidências científicas estão mais sólidas, mas elas têm revelado que o problema é bem mais grave. Pior do que isso, o aquecimento global deixou de ser algo reservado para um futuro distante, manifestações visíveis das mudanças climáticas já estão aí, desalojando e matando pessoas e produzindo prejuízos econômicos. De fato, com quebras de recordes sucessivos de temperatura média global em 2014, 2015 e agora - já dado como certo pelos principais climatologistas do mundo - em 2016, realmente é estranho alguém permanecer repetindo coisas tão malucas quanto "o planeta está resfriando", "o clima parou de aquecer em 1998", "vamos entrar em uma nova era glacial" e bobagens do gênero...


Nos EUA, negacionistas estão cada vez mais desmoralizados, especialmente porque os vínculos de vários deles com empresas têm vindo à tona. No Brasil, figuras nefastas como Molion e Felício andam em baixa na mídia. Duvido que até figuras toscas como Aldo Rebelo tenham hoje a pachorra de negar o aquecimento global, como fez ele na época que era relator do Código Florestal. Até Trump tentou esconder a imbecilidade que proferiu há 4 anos, sobre tudo ser "uma farsa inventada pelos chineses" (na versão Aldo Rebelo, era estranhamento inventada pelos estadunidenses...).

A Shell e outras gigantes do ramo fóssil alardeiam seus
investimentos em projetos de pesquisa sem CCS. Um
sinal de que estamos salvos ou de que aqueles que nos
enganaram por décadas ao financiarem o negacionismo
climático estão prontos para nos enganarem outra vez?
O problema é que o reconhecimento do problema, ao invés de um real ganho de consciência da necessidade de ação, pode apenas ter nos feito caminhar para outro estágio de denegação. Ao invés de negar a existência do problema, como antes, agir como se ele estivesse praticamente resolvido. Hoje começo a ver com mais frequência na internet a proliferação de notícias que alardeiam pretensas soluções, em muitos casos através das chamadas técnicas de CCS, ou captura e armazenamento de carbono (a geoengenharia pelo visto já está soando assustadora demais). Algumas das manchetes são particularmente otimistas: "Acidentalmente, cientistas convertem CO2 em combustível", "Emissões de CO2 viram pedra quando gás é enterrado", etc. Esse otimismo, sinceramente, é injustificável. Dá a impressão de que o aquecimento global passou, quase que instantaneamente, de problema inexistente ou distante para problema resolvido. Será?
Infelizmente, esse otimismo pode ser tão prejudicial no sentido das ações necessárias para evitar um caos climático ainda mais profundo quanto o velho negacionismo, pois dá uma falsa sensação de conforto, funciona como um anestésico. Pior, dá a impressão de essa propaganda em torno do CCS ser pouco mais do que uma nova panacéia oferecida pela indústria de combustíveis fósseis para evitar sua débacle. Afinal, se podemos tirar CO2 da atmosfera, porque teríamos de parar de queimar carvão, petróleo e gás? As mineradoras, petroquímicas e empresas de energia com suas termelétricas agradecem a quem cair na cantinela...

Como apostar em tecnologias experimentais, sem evidência alguma de que possam funcionar em grande escala e sem garantia alguma de que uma estocagem segura de carbono possa efetivamente se dar? Principalmente qual a justificativa para não fazer o dever-de-casa agora, já, com o que não apenas está à mão, mas que se sabe que é a única alternativa hoje viável, que é abandonar as fontes fósseis? Como arriscar, especialmente se o tempo corre contra nós e precisamos primeiro parar de injetar carbono na atmosfera - o que podemos fazer com as tecnologias que estão à mão - antes de pensarmos em removê-lo em massas (o que pode até mesmo vir a ser necessário)?

Se você contrair uma doença grave,
vai querer buscar a cura com os tra-
tamentos disponíveis ou esperar que
uma nova técnica milagrosa saia dos
laboratórios e fique disponível?
É como se antes o sujeito - com um câncer diagnosticado - se recusasse a admitir que estava doente. Repetia à exaustão que "estava tudo bem" porque "não existia tumor", embora o ultrassom, a tomografia e a ressonância dissessem o contrário, assim como 97% dos médicos. Agora, a lógica de dizer que "está tudo bem" permanece, mas de uma maneira diferente. Tem tratamento à mão, disponível, recomendado por praticamente todos os médicos. Mas o sujeito reclama que a cirurgia seria invasiva e a químio teria efeitos colaterais, dizendo que sabe de médicos que estão pesquisando tratamentos alternativos que estarão disponíveis no futuro (acreditando ainda que esses tratamentos ainda não existentes não teriam tanto efeito colateral quanto o que se tem hoje). E aí? Sério que alguém consideraria essa uma postura razoável?

Sabíamos há vários anos que as mudanças climáticas trariam sérios impactos sobre a maioria da humaidade e há muito tempo já não tínhamos o direito de postergar as ações necessárias, até por uma questão de justiça geracional. Mas o que dizer quando o aquecimento global deixou de ser algo pertencente a um futuro abstrato e passou a modificar o presente da maioria de nós, com secas recorde, ondas de calor mortífieras, supertempestades, furacões violentos? Agora não apenas não temos o direito de jogar as soluções para depois (na verdade, nunca tivemos), como é insensato, já vivendo o problema no presente, apostar em soluções somente disponíveis (se disponíveis!) num futuro incerto. O correto teria sido prevenir um problema futuro agindo no presente. Mas esse "timing" ficou para trás, no passado. Hoje, o problema presente precisa ser atacado sem rodeios, com as soluções presentes.

Abandonar as fontes fósseis é hoje
a única via segura para sairmos do
buraco.
E dentre as soluções presentes o mais óbvio é encarar de frente a questão das energias, lidando de uma só vez com a urgente necessidade de substituir as fontes fósseis por fontes limpas e a impossibilidade de seguir com a demanda crescente imposta por um sistema produtivo irracional, artificialmente acelerado no contexto da cultura do descarte, do consumismo e da obsolescência programada.

Estou preparando um artigo de mais fôlego para combater as ilusões que estão sendo vendidas com base nas tecnologias de CCS (e BECCS, onde BE significa bioenergia), mostrando os problemas e limites de algumas das técnicas vendidas como "soluções mágicas". Mas por enquanto não podia deixar de expressar meu incômodo com o erro de concepção dessa aposta. Afinal, quando se quer realmente sair de um buraco, para-se de cavar. Não se aposta que, num futuro distante e incerto, um guindaste tão grande que sequer existe hoje, venha resgatar você...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Copo "meio cheio" não salva uma casa em chamas

Alok Sharma, presidente da COP26, teve de conter as lágrimas no anúncio do texto final da Conferência, com recuo em tópicos essenciais "...

Mais populares este mês