O crescimento da demanda por gás na- tural, indevidamente defendido como um "mal menor" em relação aos outros combustíveis fósseis, tem levado à expansão do fracking mundo afora. |
Há algo no ar além do CO2
É possível estabelecer uma relação entre a contribuição relativa desses gases para o aquecimento global e a contribuição do CO2, definindo uma grandeza (adimensional) conhecida como potencial de aquecimento global, ou GWP, da sigla em inglês. Esta grandeza depende da escala de tempo considerada, pois cada gás tem um tempo de residência diferente na atmosfera. O metano tem uma vida média na atmosfera de 12,4 anos, significativamente mais curta do que o CO2 e em virtude disso, seu efeito é muito intenso a curto prazo. De acordo com o 5º Relatório de Avaliação (AR5, Myhre et al. 2013) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), o GWP-20 (potencial de aquecimento global na escala de 20 anos) para o metano, sem considerar feedbacks do ciclo do carbono, é igual a 84 (86 se tais mecanismos de retroalimentação forem computados), ou seja, cada molécula de metano lançada na atmosfera terá, passados 20 anos, contribuído diretamente 84 vezes (86 vezes, considerando-se os feedbacks) para o desequilíbrio energético planetário. Numa escala mais longa, esse efeito é menor, mas ainda assim muito significativo: o GWP-100 dessa substância é 28, sem incluir os feedbacks, ou 34, se incluirmos estes efeitos (IPCC, 2013).
Com um efeito estufa muito mais potente do que o da molécula de CO2, a concentração de metano na atmosfera cresceu nada menos do que 150% em relação ao período pré-industrial. |
Gás natural: um “mal menor”?
As informações acima são importantes a fim de que não se compre acriticamente a ideia de que o gás natural é “mais limpo” ou “mais amigável para o clima” do que outras fontes fósseis de energia. Esta, obviamente, é uma conclusão decorrente de um fato: o de que, na queima, uma quantidade menor de CO2 é produzida, por unidade de energia, quando o combustível adotado é o gás natural. Para sermos mais precisos, segundo dados da Administração de Informações sobre Energia dos EUA (EIA 2016), as emissões de CO2 associadas à queima de gás natural são de 43,1% a 48,8% menores do que as de carvão betuminoso e antracito, respectivamente.
Vazamentos de gás aparecem desde os poços, passando pelo processamento e distribuição, constituindo as chamadas emissões fugitivas. |
Segundo Alvarez et al. (2012), a taxa de vazamento de gás (desde a extração no poço até o usuário final) considerada pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (a EPA) é de 2,4%. Ora, considerando-se que 90% do gás natural é composto de metano e que o GWP-100 com feedbacks desta substância é 34, conclui-se que o efeito climático do gás natural, na escala de 100 anos, considerando-se as emissões fugitivas é nada menos que 71,3% maior do que ignorando-as. Na escala de 20 anos, então, já que o GWP-20 com feedbacks para o metano é 86, o efeito das emissões fugitivas é de quase triplicar (aumento de 184%) o impacto climático do gás natural, fazendo com que, a curto prazo, seu efeito seja maior do que o de qualquer forma de carvão, mesmo considerando esta estimativa da EPA (relativamente modesta) para a taxa de vazamento. A longo prazo (100 anos), seu impacto ainda assim permanece comparável ao do carvão (0,31 kg de CO2 por kWh para o gás natural versus 0,32 kg de CO2 por kWh para carvão betuminoso ou 0,35 kg de CO2 por kWh para antracito). Não é à toa que Alvarez et al. (2012) concluem que é inviável, como estratégia de mitigação, uma permuta de derivados de petróleo por gás natural como combustível veicular, dado que seriam necessários quase 300 anos (quando finalmente o efeito do metano seria significativamente diminuído) para que se pudesse contar com o benefício de uma forçante radiativa reduzida.
Enfim, o fracking
Até agora ele permanecia fora de nossa discussão e que tudo o que debatemos até o momento diz respeito ao gás natural de forma genérica, convencional ou não. Eis que entra o fracking e o dano para o clima associado ao gás natural se aprofunda de vez.
Como se não bastasse todo o conjunto de impactos que ampliam a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos face as mudanças climáticas, especialmente o uso excessivo e a contaminação da água, recurso que se tornará cada vez mais valioso para consumo humano e produção alimentícia em um planeta aquecido, é preciso considerar que o fracking provavelmente já está levando a um aumento das emissões fugitivas.
Pela própria natureza da técnica, a tendência é que as emissões fugitivas sejam bem maiores na extração de gás via fracking do que no caso do gás convencional. Na Pensilvânia e em outros estados dos EUA em que o fracking se disseminou, o tipo de cena mostrado aqui (gás chegando pelas torneiras de água) se tornou comum. Fonte da foto: Al Jazeera. |
Para além dos demais impactos, portanto, o fracking torna o gás natural uma bomba climática terrível. Do ponto de vista do impacto em 100 anos, emissões fugitivas da ordem de 10% já seriam capazes de elevar o impacto climático deste combustível ao dobro do associado ao antracito e mais do dobro do associado a qualquer outra variedade de carvão. Com o elevado GWP-20, que chega a 86 sendo incluídos os feedbacks climáticos, o impacto de curto prazo do gás natural proveniente de fracking pode chegar a quase 5 vezes o impacto da queima do carvão mineral.
O surrealismo do gás natural e fracking no Brasil
A análise feita até aqui em geral mostra paralelos entre o gás natural e outras fontes fósseis e demonstrou-se claramente que, do ponto de vista climático, as contas em defesa do gás como alternativa simplesmente não fecham, especialmente quando se trata de gás não-convencional e de fracking. Este paralelo geralmente encontra sentido porque muitos países estão debatendo e aplicando uma política de incrementar o uso do gás natural como uma suposta “ponte” entre outras fontes fósseis, como o carvão, e as renováveis. O que se demonstra aqui é que essa tese da “ponte” (“bridge fuel”) é inteiramente falaciosa e que é necessário que os EUA e demais países desenvolvidos apostem imediatamente numa rápida e completa transição de suas matrizes energéticas, abandonando as fontes fósseis em seu conjunto.
redução da alíquota de ICMS para incentivar novas termelétricas a gás para seu estado, num contexto em que a presença do carvão (e também do óleo) na matriz brasileira é (felizmente) pequena? Quando sequer o falso debate de “substituir carvão por gás” é apresentado, já que não se cogita de forma alguma o fechamento das termelétricas a carvão no contexto do nefasto avanço das termelétricas a gás? É evidente, portanto, que neste caso a falácia é ainda maior e o avanço do gás natural e do fracking são ainda mais trágicos e injustificáveis do que nos EUA e outros países capitalistas centrais. Trata-se evidentemente de uma manobra das corporações de energia suja, bloqueando soluções energéticas justas e democráticas exatamente em países que têm vocação clara para uma matriz energética 100% isenta de carbono.
A conclusão a que se pode chegar é que é inadmissível que assistamos no Brasil, bem como em qualquer outro país cuja matriz não é dominada pelo carvão, ao crescimento do gás natural como suposta alternativa, especialmente em sendo sua produção baseada na fratura hidráulica. Mesmo que não se consiga romper imediatamente com o predomínio da lógica de mercado aplicada à geração de eletricidade no Brasil, expressa nos leilões de energia, é inadiável uma política de restringir a inscrição somente a fontes renováveis nesses leilões. O avanço das termelétricas, sejam a carvão, óleo ou gás, e os impactos das extrações desses combustíveis, incluindo seu impacto climático, precisam ser detidos.
Allen, D. T.; Torres, V. M.; Thomas, J.; Sullivan, D. W.; Harrison, M.; Hendler, A.; Herndon, S. C.; Kolb, C. E.;Fraser, M. P.; Hill, A. D.; Lamb, B. K.; Miskimins, J.; Sawyer, R. F.; Seinfeld, J. H. (2013): Measurements of methane emissions at natural gas production sites in the United States Proc. Natl. Acad. Sci. U. S. A., 110 ( 44)17768– 17773, DOI: 10.1073/pnas.1304880110
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Bardzo fajnie napisane. Pozdrawiam serdecznie !
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