Terra: ajuste
delicado
Com exceção de um ou outro astronauta, a grande maioria de
nós vive, do primeiro ao último dia de vida, imerso nesta delgada película de
ar que recobre a Terra: a atmosfera. Além de garantir-nos o oxigênio que
respiramos e usamos para retirar energia dos alimentos e, graças à presença de
ozônio em suas camadas superiores, nos proteger da radiação ultravioleta com
que o Sol bombardeia o planeta, a atmosfera cumpre também um papel regulador do
clima, graças ao chamado “efeito estufa”.
Exercido por gases minoritários na atmosfera terrestre
(vapor d’água, dióxido de carbono, metano e óxido nitroso), o efeito estufa é
fundamental para o clima ameno da Terra, assegurando a ocorrência de água em
estado líquido e, portanto, garantindo as próprias condições de existência da
vida como a conhecemos. Sem esse efeito, a Terra seria nada mais que uma esfera
congelada e árida; com efeito estufa em demasia, seus oceanos poderiam ferver
deixando para trás uma paisagem infernal como a do planeta vizinho, Vênus,
recoberto por nuvens de ácido sulfúrico e onde o chumbo escoa, em estado
líquido, em sua superfície causticante. É um ajuste delicado, do qual
dependemos.
400 ppm: uma marca
inédita e perigosa
Especialmente desde o início da Revolução Industrial,
atividades humanas associadas ao desenvolvimento capitalista, como a queima de
combustíveis fósseis para geração de energia e transporte e o desmatamento, que
abre caminho para a expansão da fronteira agrícola, têm sido responsável pela
produção dos chamados gases de efeito estufa em quantidades acima daquela que o
ecossistema terrestre é capaz de reciclar. É como se a atmosfera do planeta
fosse tratada, impunemente, como uma enorme lata de lixo, sem a preocupação
nenhuma sobre as consequências desse lixo (no caso as emissões desses gases) se
acumular. Com efeito, é como se a atmosfera terrestre tivesse sido privatizada,
para servir de lixão, pela indústria petroquímica, pelas termelétricas, pela
indústria automobilística, pelo agronegócio, que a utilizam sem pagar um
centavo pelo lixo que nela despejam. A crença de que esse uso perdulário da
atmosfera pode seguir impune é obviamente incoerente do início ao fim.
Durante os 10 mil anos em que a civilização humana
floresceu, em que deixamos de ser pequenos grupos nômades para, em que pese a
incapacidade sistêmica de resolver problemas básicos de fome, desigualdade e
violência, nos tornarmos 7 bilhões de pessoas em uma sociedade altamente
tecnológica, o clima da Terra permaneceu notadamente estável, com concentrações
de CO2 muito próximas ao valor pré-industrial de 280 ppm.
Rede global de medidas de CO2. São ao todo 40 sítios de medidas espalhados pelo planeta, incluindo a primeira estação, em Mauna Loa. |
A marca de 400 partes por milhão (ppm) de dióxido de carbono
(CO2) já havia sido ultrapassada em 2013 na estação de Mauna Loa, um
sítio de medidas localizado no Havaí e que coleta dados da concentração desse
gás desde 1958. Mas Mauna Loa é um único ponto, e agora a marca é global. É preciso retroceder pelo menos 3 milhões de
anos no tempo, para encontrar, na história geológica do nosso planeta,
concentrações de CO2 tão altas quanto as de hoje. E o estado do
planeta era outro, então: temperaturas globais alguns graus acima, oceanos
vários metros mais altos, provável ausência de manto de gelo permanente no
Ártico, padrões de chuva e seca bastante distintos dos atuais.
Apesar de esperada, por conta da tendência dos últimos
anos, a marca de 400 ppm deveria recair sobre os governos nacionais, dirigentes
políticos, gestores econômicos, lideranças dos mais variados matizes e funções
com o peso ensurdecedor de mil sirenes de alerta a soar ao mesmo tempo, como
ameaça às vidas humanas ante eventos extremos; como ameaça à segurança hídrica,
alimentar e energética; como risco severo de novas e inéditas pressões
migratórias. A Física do Clima é clara e cristalina acerca da
relação entre aquecimento global e
aumento da ocorrência de extremos tanto de seca e calor, quanto de chuva e
tempestades! Uma atmosfera mais quente funciona como um maior
reservatório de vapor d’água: ele requer mais tempo de evaporação para “ser
preenchido”, isto é, atingir a saturação; quando “cheio” (ou melhor, saturado),
dele se despejam a maior quantidade de água acumulada. É tão simples quanto inconveniente para nós, humanos.
Alarmes, sirenes, em todo lugar
E alertas já haviam soado, na forma de um novo recorde de
temperatura global estabelecido ao final de 2014, que se confirmou como o ano
mais quente de todo o registro histórico, iniciado em 1880. Soou quando o
período de Janeiro-Fevereiro-Março de 2015 se revelou como o primeiro trimestre
mais quente desse mesmo registro, colocando este ano já na rota de nova quebra
de recorde global de temperatura, desbancando seu antecessor.
Acreditava-se até pouco tempo que a Antártica, com exceção da Península, estava relativamente "imune" ao degelo provo- cado pelo aquecimento global. Nada mais falso, como se ve- rificou recentemente com a descoberta de uma grande perda de massa na geleira Totten. |
Soaram, também, na forma de um degelo sem precedentes em ambos
os hemisférios, retirando da Terra de um importante regulador natural da sua
própria temperatura. O gelo, por refletir a maior parte da luz solar que sobre
ele incide, contribui para mantê-la dentro de determinados limites. Reduzi-lo
implica em amplificar o próprio aquecimento global, aumentando a quantidade de
radiação solar absorvida pelo sistema climático terrestre. Hoje, o volume de
gelo marinho no Ártico durante o verão é apenas 1/5 daquele existente ao final
da década de 1970, quando teve início o monitoramento da região através de
satélites. Geleiras importantes na Groenlândia, na Península Antártica e mesmo
no leste da Antártica (antes considerado quase “imune” ao aquecimento global)
têm perdido massa a uma taxa assustadora.
Soam e ressoam quando na Sibéria e no Canadá amplas áreas do
solo outrora permanentemente congelado (e por isso chamado de “permafrost”) são
expostos a temperaturas acima de zero, liberando grandes quantidades de metano
e CO2 por conta da decomposição da matéria orgânica; quando
descobre-se que a mortandade de árvores na Amazônia por conta da sucessão de
secas (como as de 2005 e 2010) comprovadamente reduziu a capacidade da maior
floresta do mundo em capturar carbono; quando a acidez oceânica (já 30% acima
dos níveis pré-industriais) já se interpõe como ameaça real e palpável a
diversas formas de vida (corais, pequenos moluscos, equinodermas) que cumprem
papel fundamental nas relações do ecossistema marinho, várias delas estando na
base da cadeia alimentar e sendo essenciais para que inúmeras espécies de
peixes e cetáceos sobrevivam.
Sim, as sirenes, os alarmes do sistema climático terrestre
estão soando todos ao mesmo tempo. E soam às nossas portas, como ameaça às vidas
humanas ante eventos extremos; como ameaça à segurança hídrica, alimentar e
energética; como risco severo de novas e inéditas pressões migratórias.
A probabilidade de ondas de calor e tempestades severas cresce assustadoramente a cada grau de aquecimento do sistema planetário. É o que evidencia o trabalho de atri- buição de Fischer e Knutti, publicado recentemente na Nature Climate Change. |
Nada menos que três em cada quatro das ondas de calor
anômalas como as que se sucedem ano após ano na América do Sul e do Norte, na
Austrália, ou na Europa, já são atribuídas ao aquecimento global, com cada vez
mais impactos, incluindo sobre a saúde humana. Incêndios florestais têm se
tornado cada vez mais frequentes, chegando a quadruplicar sua incidência no
oeste dos EUA.
A sucessão de monstruosas tempestades (furacões e tufões)
ocorridas recentemente também é evidentemente atípica: Katrina, Bopha, Sandy,
Haiyan, este último com indícios de ter sido o ciclone tropical mais violento a
jamais atingir assentamentos humanos, com ventos tão intensos e rajadas tão
furiosas que o classificariam como um tufão de categoria 6, caso essa existisse
(furacões e tufões são classificados pelos serviços de meteorologia de acordo
com uma escala que vai de 1 a 5, ou seja, o Haiyan excedeu os parâmetros
conhecidos no presente para tempestades de seu tipo).
Secas atípicas têm assolado regiões tão diversas
quanto a Índia e o Sahel africano, o Sudeste e Nordeste brasileiros e a
Califórnia e, combinadas com a utilização massiva e irracional de recursos
hídricos por monoculturas, indústria pesada, termelétricas, mineração etc., já
têm sido responsáveis por condições de iminente colapso de abastecimento em
diversas regiões urbanas no mundo afora, inclusive a maior cidade brasileira:
São Paulo.
A barreira de 2°C e o
carbono “inqueimável”
400 ppm é também uma marca próxima demais do limiar
considerado de alto risco em termos de mudança no efeito estufa terrestre (450
ppm, quantidade de CO2 que, estima-se, esteja associada a um
aquecimento muito perigoso de mais de 2°C). A partir desse limiar é
praticamente certo que alterações irreversíveis se dariam, como degelo
significativo da Groenlândia e da Península Antártica (implicando em elevação
do nível dos oceanos em vários metros), derretimento do “permafrost” (solo
congelado) com exposição de matéria orgânica à decomposição e consequente
emissão de metano e CO2 que acelerariam o aquecimento global, impactos
generalizados sobre biomas diversos, de ecossistemas marinhos a florestas
tropicais.
Mas para evitar que se ultrapasse essa barreira, a partir da
qual o risco de danos irreversíveis e catastróficos se torna extremamente alto,
nada menos que 80% do carbono fóssil tem de ficar exatamente onde está: no
chão! E isso implica no abandono dos projetos caros, irresponsáveis e de alto
risco de acidentes em sua exploração, das fontes ditas “não-convencionais”: o
betume de Alberta, o petróleo sob o gelo do Ártico, o gás de folhelho (extraído
via fratura hidráulica ou “fracking”), o petróleo do pré-sal! Ou seja, muito do
carbono fóssil simplesmente não pode ser queimado e a grande contradição é que,
na forma de reservas de petróleo, carvão e gás, esse carbono é propriedade
privada de meia dúzia de corporações!
E é preciso que se diga: evitar a ultrapassagem de 450 ppm
é, na verdade, a primeira tarefa, que torna possível a segunda: retornarmos,
via captura de carbono (reflorestamento), a atmosfera para níveis de efeito
estufa realmente seguros de 350 ppm de CO2. Manter mais de 400 ppm na atmosfera por um período muito prolongado implica em amplificar sobremaneira os efeitos deletérios já verificados do aquecimento global. Mas certamente a primeira coisa que deve ser feita quando se está preso em um buraco, a fim de que se possa sair dele, é parar de cavar!
A indústria de
combustíveis fósseis precisa ir para a lata de lixo da História
É por não confrontar com a poderosa indústria de
combustíveis fósseis que as propostas voluntárias que os países continuam
submetendo para mais uma rodada de negociações climáticas (a COP21 em Paris, no
final do ano) continuam tímidas. Não tocam em questões essenciais. Não ousam
desafiar os poderosos setores econômicos que querem continuar a dispor da
atmosfera terrestre como sua lata de lixo particular! O uso de combustíveis
fósseis continua sendo subsidiado em cifras que anualmente ultrapassam, numa
estimativa conservadora, os 700 bilhões de dólares, incluindo subsídios
diretos, isenções fiscais, garantia de preço etc. A ascensão das renováveis é
lenta e voltada não para a substituição das fonte fósseis mas para introduzir
novas fontes de energia para o “crescimento econômico”, numa lógica em que cabe
tudo para saciar a fome energética do capital: nuclear, fóssil, eólica, grandes
barragens... O agronegócio continua se expandindo, com grandes empresas como a
Monsanto seguindo suas apostas no binômio transgênico-agrotóxico, praticamente
ignorando a inclusão do glifosato na lista de agentes cancerígenos pela
Organização Mundial de Saúde. A
indústria automobilística continua chantageando trabalhadores e governos, como
no Brasil, em busca de mais benesses, independente de seu produto implicar cada
vez mais em extração de minério, uso de água e energia na indústria,
engarrafamentos e emissões (de particulado, substâncias tóxicas e CO2)
nas grandes cidades e cada vez menos em mobilidade humana de fato.
Em sua irracionalidade, o que o capital teme é que o valor
de mercado das gigantes petroquímicas (hoje estimado em bem mais de um trilhão
de dólares concentrados em somente meia dúzia de companhias) despenque, pois o
preço de suas ações depende de ativos que nada mais são do que especulação com
carbono, pois este não pode ser queimado a não ser que realmente se deseje
transformar a Terra num planeta inóspito e, porque não dizer, praticamente
inabitável. Entrelaçadas aos bancos e em seu desvario de atender à sede de
lucro de mega-acionistas e à sede de ostentação de dirigentes com salários
astronômicos, a indústria fóssil segue financiando campanhas contra a Ciência
do Clima, promovendo um lobby imoral contra medidas que limitem as emissões e
sufocando iniciativas de democratização dos sistemas de geração de energia e
transporte. Na racionalidade que de nós deve ser exigida, não podemos ter
dúvida: a manutenção dos sistemas de suporte à vida humana (água, alimentos,
clima estável) demanda o fim dos combustíveis fósseis. Ao invés de ser
concedido a essa indústria destrutiva o direito de continuar usando a atmosfera
como lata de lixo, é ela própria que precisa ser lançada à lata de lixo da
História!
Não há solução para a
grande crise civilizacional nos marcos deste sistema
É provável, assim, que em nenhum momento de sua trajetória
anterior, a humanidade tenha se deparado com tamanha crise de civilização, pois
a questão climática coloca objetivamente em xeque a própria existência de uma
sociedade humana organizada ou talvez mesmo da nossa própria espécie. Mas é
também provável que poucas vezes a saída de uma crise também se mostre tão
clara: é preciso zerar as emissões líquidas de CO2 e demais gases de efeito
estufa (e depois torná-las efetivamente negativas). É preciso, partindo de políticas que impliquem em eliminação completa
dos subsídios à indústria fóssil e ao agronegócio exportador, taxação dura das
emissões de carbono e desinvestimento nos setores poluidores, chegar à
expropriação de todas as jazidas fósseis, a fim de garantir que sua grande
maioria permaneça intocada. Um giro radical na matriz energética e na base
produtiva precisa ser feito, privilegiando a energia solar residencial e o
transporte público de massas, assegurando distribuição de renda via passe
livre, geração doméstica de energia elétrica e prioridade para alimentos
produzidos via agricultura familiar e agroecológica e garantindo uma nova onda
de empregos verdes (para onde se deve orientar inclusive a massa de trabalhadores
que precisa ser deslocada de setores a serem reduzidos, como as indústrias
extrativistas, as petroquímicas e as montadoras de automóveis particulares).
É uma tarefa urgente, revolucionária,
monumental. Urgente, pois precisa ser cumprida na escala de poucas décadas, com
ações muito profundas tendo de ser tomadas já nos próximos 5 a 10 anos.
Revolucionária, pois só pode ser levada a cabo enfrentando o poder ditatorial
da plutocracia fóssil-financeira, que estrangula o Sistema Terra na sua busca
irracional de lucro; pois só pode ser de fato realizada por aqueles e aquelas
que almejam outra relação com a natureza, em que a vida esteja acima do dinheiro;
pois requer que o poder decisório passe de uma minoria gananciosa para a
maioria; pois demanda que o lucro rápido e fácil do agora dê lugar a condições sustentáveis
para as gerações atuais e futuras. Mude o sistema, não mude o clima! Monumental,
por não poder deixar de ser abraçada por nenhum/a lutador/a, qualquer que seja
a causa a que se dedique mais centralmente. Nossa sociedade não paira no ar;
antes depende do resto da natureza. A ruptura do sistema climático inviabiliza
qualquer organização social e particularmente uma organização social baseada na
justiça e na equidade. Não há Socialismo possível em Terra arrasada!
http://psicanaliseambiental.blogspot.com.br/2015/02/uma-logica-suicida.html
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