Carcaças de cágados no piso do açude do Cedro (Quixadá), inteiramente seco. Foto: Hugo Fernandes Ferreira |
Sem sacar que o espinho é seco
Sem sacar que seco é o Ser Sol
Sem sacar que algum espinho seco secará
E a água que sacar será um tiro seco
E secará o seu destino seca"
(Carlinhos Brown)
(*) Este artigo foi originalmente publicado no site do Observatório do Clima
As carcaças de cágados no piso seco do Cedro, primeiro grande açude do Ceará, construído ainda no século 19, são uma imagem triste e impactante desta que já é a maior seca do registro histórico no Estado, iniciado em 1910 (e provavelmente na região Nordeste como um todo). Com efeito, o período de 2012 até 2016 igualou-se ao de 1979 a 1983 como a mais prolongada sequência de anos com chuvas abaixo do normal em território cearense e a média de cinco anos é a menor jamais registrada (521 mm, contra 566 mm para 1979-1983). No Nordeste como um todo, segundo a Agência Nacional de Águas, a seca excepcional, de categoria máxima (a mais intensa da classificação, com perdas generalizadas na agropecuária, comprometimento dos corpos hídricos e impactos de longo prazo sobre o ecossistema) se alastrou por todos os Estados, do Maranhão à Bahia.
Situação dos reservatórios cearenses em 09/02/2017: 74% deles está com menos de 10% do volume. |
Hoje, o colapso ronda as metrópoles da região. O monitoramento do Instituto Nacional do Semiárido (Insa) e do Portal Hidrológico do Ceará mostra que a maior parte dos açudes encontra-se abaixo dos 10% em volume, incluindo os reservatórios de grande porte, críticos para o abastecimento urbano em larga escala. É o caso do Castanhão, principal fonte de abastecimento para a Região Metropolitana de Fortaleza, cujo estoque de água corresponde a meros 4,9% do seu volume, assim como do Banabuiú, terceiro maior reservatório cearense (0,4%) e do Boqueirão (4,1%), importante açude paraibano. Em situação não muito melhor estão o Armando Ribeiro Gonçalves (Rio Grande do Norte, com 13,7%), e o Orós (Ceará, 11,6%).
segundo dados divulgados nesta semana pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTIC), a probabilidade de chuva abaixo do normal entre fevereiro e abril no Nordeste é de 40%, contra 35% para chuvas na média e 25% para chuvas acima da média. Segue o seco.
Eventos extraordinários como esse dificilmente podem ser associados a uma única causa. É verdade que o Nordeste setentrional é particularmente sensível à variabilidade climática natural, com as chuvas tendendo a diminuir ou aumentar de acordo com os padrões de temperatura oceânica no Pacífico e Atlântico. No momento, os modos de variabilidade de longo prazo em ambos os oceanos estão em fase desfavorável para as chuvas na região. Embora a chamada variabilidade interanual permaneça, essa variabilidade de mais longo prazo (decadal a multidecadal) a modula, aumentando probabilidades maiores de ocorrência de eventos de El Niño, no Pacífico, e de aquecimento anômalo na porção norte da bacia do Atlântico, em ambos os casos contribuindo para a redução das precipitações.
A degradação ambiental na escala local, com o desmatamento comprometendo matas ciliares e nascentes e assoreando rios e reservatórios também precisa ser colocada nessa contabilidade. Uma inadequada e insuficiente política de resíduos e saneamento contribui também para o comprometimento da qualidade da água na região.
Mas é preciso dizer que a vulnerabilidade da região é amplificada por conta das escolhas dos modelos de desenvolvimento. A multiplicação das obras hídricas não levou em conta em geral as necessidades da maioria da população e visou essencialmente ao favorecimento de determinadas atividades econômicas, como o agronegócio e setores industriais hidrointensivos.
SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa). O pesadelo só se amplia, com a chegada de uma siderúrgica (a CSP, Companhia Siderúrgica do Pecém) e os planos de implantação de uma refinaria e uma mina de urânio.
Por fim, mas não menos importante, já que mencionamos as emissões de dióxido de carbono, precisamos falar das mudanças climáticas. Uma lei física muito simples (conhecida por nós, cientistas, como a equação de Clausius-Clapeyron) diz que uma atmosfera mais quente é capaz de armazenar mais vapor d’água e que a implicação direta disso é que, em mundo mais quente, as secas extremas, assim como as tempestades severas, se tornarão mais intensas e mais frequentes. As projeções climáticas para o Nordeste brasileiro apontam em geral para um clima mais seco, mesmo que a precipitação total média não se reduza, com a evaporação e evapotranspiração acompanhando a escalada das temperaturas. Embora ainda não se tenha o conhecimento científico necessário para estabelecer isso, é possível que estejamos em plena alteração da “normal climatológica” para a região.
É possível até que a perda acelerada de gelo no hemisfério norte, que já começa a alterar as correntes do Atlântico, interferindo na distribuição de calor, tenha alguma conexão com condições recorrentes de seca, já que a posição da Zona de Convergência Intertropical – principal sistema das chuvas na porção setentrional do Nordeste – é fortemente ditada pelos padrões térmicos oceânicos.
O Nordeste precisa se preparar para enfrentar as mudanças globais do clima e os desafios locais de justiça socioambiental. Precisa cuidar de seus aspectos mais vulneráveis: preservar o bioma singular da caatinga, fundamental para manter solo e rios; zelar pelos seus estoques hídricos em todas as escalas (das cisternas aos maiores reservatórios) e utilizá-los de forma parcimoniosa; reavaliar o modelo de desenvolvimento, privilegiando a agricultura familiar e cadeias industriais de baixo impacto ambiental e hídrico.
Sem CO2, sem consumo de água, com geração de empregos, energia solar seria uma aposta óbvia para o Nordeste. |
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