quarta-feira, 26 de março de 2014

Clima não rima com lucro: da Especulação Financeira à Especulação com o Sistema Terra.

O negacionismo climático tem em comum com a lógica do mercado financeiro muito mais do que simplesmente a defesa da continuidade dos combustíveis fósseis ou o vínculo em geral facilmente identificado com a direita organizada. Envolve também uma perspectiva irresponsável, um comportamento de risco e uma linha de raciocínio de que o "estrago", em acontecendo o pior, pode ser repassado adiante, seja aos trabalhadores (que arcam sempre com o ônus de bancos "socorridos" pelo Estado ou de "bolhas" financeiras estouradas), seja às gerações futuras (a quem caberá desatar o nó da crise climática segundo os negacionistas quando estes fazem concessão, por um minuto, de sua farsa e admitem que a mudança no clima pode vir a provocar catástrofes).


A financeirização do capital se completou na escala global. O próprio imperialismo, que no início e meados do século era baseado fortemente nos Estados nacionais, que serviam, além de aparatos militares, como agentes econômicos centrais via capitalismo de Estado por serem estes capazes de reunirem grandes somas de capital para investimentos em infraestrutura, sofreu mudanças expressivas.  Com fusões, compra de participações em outras companhias, flexibilização de regras econômicas em diversos Estados nacionais, aparecimento de acordos comerciais, etc., corporações globais se estabeleceram cada vez mais como força dominante, fortemente centradas nos bancos.

Incorporados organicamente ao mercado global os países do Leste Europeu e quebradas barreiras comerciais e restrições aos fluxos de capital, por um certo período, a reprodução capitalista adquiriu um caráter brutalmente especulativo. Não que esse traço tenha desaparecido, mas o sistema, após sucessivas crises, certamente percebeu a vulnerabilidade implicada em reprodução ampliada do capital instantânea, meramente especulativa e sem lastro nos processos de produção real de mercadoria (após rompimentos consecutivos de bolhas especulativas e quebras sucessivas de bancos, que foram socorridos novamente pelos Estados nacionais às expensas das classes que vivem do trabalho, claro!). Um certo balanço entre a – intrínseca, nesta etapa de desenvolvimento do capital – característica especulativa e a expansão da produção ou crescimento real mostrava-se necessário.

A poluição em Beijing, resultado principalmente da queima
de carvão em usinas termelétricas, tem levado a graves
problemas de saúde. Mundialmente, a poluição do ar já
mata mais do que AIDS, diabetes e acidentes de carro
combinados.
Ao mesmo tempo, exércitos produtivos imensos em potencial, particularmente o chinês, eram retirados da cama. Nesse novo encaixe econômico global, a China, que chegou a experimentar taxas de crescimento do PIB da ordem ou acima de 10% anuais por duas décadas, transformou-se no grande galpão de fábrica mundial. Ao mesmo tempo, países como o Brasil expandiram a sua fronteira de agronegócio, servindo de fazenda global (grande parte da soja brasileira – transgênica – exportada para a China vai para ser transformada em ração para porcos, cuja criação aumentou para suprir a demanda por mais consumo de carne pelos chineses). Esse novo ciclo de crescimento capitalista impôs novas pressões sobre o sistema Terra e, como mostraremos, aguçou brutalmente a crise ecológica no período recente.

Somente a indústria petroquímica, no Delta do Niger, é
responsável por um número enorme de conflitos ambientais,
conforme levantamento da Universidade Autônoma de
Barcelona, divulgado pelo site da BBC.
Resgata-se, aqui, a ideia de que o crescimento capitalista – a não ser que este fosse “puramente especulativo” – implica em aumento da demanda por matéria-prima e energia. Como regra global, do Canadá à Rússia, do Brasil e países andinos à África, da China ao Ártico, a combinação de ataques aos ecossistemas se dá pela busca de novas jazidas de minérios e de combustíveis fósseis, pela construção de novas grandes barragens para assegurar suprimento de água seja para geração de energia, seja para os processos industriais e para irrigação (ou ainda abastecimento humano de grandes metrópoles) e pela expansão da fronteira agropecuária. É o que fez com que o nível de ocupação das terras continentais (excluindo as calotas polares) ultrapassasse os ¾ globalmente (limitando a não intervenção humana a algumas áreas desérticas ou semidesérticas e outras de floresta tropical e boreal). Paralelamente, o consumo de água doce cresceu cerca de seis vezes nas últimas cinco décadas (enquanto a população pouco mais do que duplicou no mesmo período). Nesse quadro, o número de conflitos ambientais não tem cessado de aumentar, vide este levantamento da Universidade Autônoma de Barcelona divulgado pelo site da BBC.

Para além do crescimento da demanda “de entrada” no processo produtivo (entram matéria-prima, como constituinte material na produção, e energia, necessária para que as transformações que esta implica ocorram), há um fortíssimo crescimento nos rejeitos do processo produtivo, atestando a ruptura do metabolismo existente entre a sociedade e o restante da natureza. Esse metabolismo, como o de um ser vivo que obtém o alimento e elimina seus excretas para que estes sejam reprocessados no ambiente, deveria permanecer num estado de equilíbrio. Os fluxos de matéria e energia para dentro e para fora da sociedade (ou mais exatamente dos processos produtivos que a sustentam) deveriam se coadunar com a capacidade de reposição de recursos e de processamento de rejeitos pelo ecossistema global. Mas é evidente que isso não se dá no presente. Longe disso. A contaminação química do ecossistema terrestre é global. São exemplos o plástico nos oceanos; os metais pesados no solo, rios e penetrando por toda a biota via cadeia alimentar; o ozônio (desejável em camadas elevadas da atmosfera mas extremamente prejudicial próximo à superfície) produzido por reações fotoquímicas que se originam em motores e caldeiras de combustão e que gera smog (como o que literalmente obstrui a visão em Beijing e outras grandes cidades da China e outros países)... A mudança na composição química da atmosfera se dá de forma múltipla: a quantidade de aerossóis (particulado líquido e sólido em suspensão) se multiplicou brutalmente com os processos industriais, combustão de combustíveis fósseis e queimadas; gases que não existem naturalmente agora fazem parte do ar que respiramos, particularmente os halocarbonetos (que incluem os CFCs responsáveis pela degradação da camada de ozônio estratosférico e que, em seu conjunto, são gases de efeito estufa) e as concentrações de gases como óxido nitroso (resultante da decomposição de fertilizantes e outros agroquímicos nitrogenados), metano (emitido em associação com atividades agropecuárias) e, claro, dióxido de carbono, ou CO2. Além da influência brutal sobre o clima (os três últimos citados são gases de efeito estufa), o excesso de CO2 na atmosfera leva a que este se dissolva nos oceanos, acidificando-os (o pH já aumentou 0,1 desde o período pré-industrial, o que implica em um aumento no nível de acidez em quase 30%). À contaminação química, soma-se a contaminação radioativa, associada aos sucessivos testes nucleares e, claro, aos acidentes e vazamentos em reatores, como os casos trágicos de Tchernobyl e Fukushima. Ao se ter a humanidade (ou mais precisamente o capital) pressionando o ecossistema global como uma força de escala geológica, interferindo decisivamente (e em vários casos de forma dominante) nos ciclos biogeoquímicos e alterando a própria termodinâmica planetária, alguns cientistas propuseram que se caracterize o presente como uma nova época geológica, distinta do Holoceno (período de cerca de 10 mil anos de estabilidade climática ao longo do qual a civilização humana floresceu): o Antropoceno, conforme a designação proposta por Crutzen e Stoermer.

Segundo o IGBP,  dentre os limites do sistema-Terra, três já
foram ultrapassados (concentração atmosférica de CO2,
remoção de nitrogênio e perda de biodiversidade), com
pelo menos outros dois já bem próximos da fronteira.
Alguns cientistas propuseram a existência de chamados limites ou fronteiras do sistema Terra, que deveriam ser respeitados(as) a fim de se manter a estabilidade do ecossistema global. Esses limites seriam: a mudança climática, a acidificação oceânica, a degradação da camada de ozônio estratosférica, os ciclos do Nitrogênio e Fósforo, o uso de água doce, a mudança no uso e ocupação do solo, a taxa de perda de biodiversidade, as emissões de aerossóis e a contaminação química. Para alguns, os limites não chegaram a ser estimados quantitativamente, mas dos que o foram, pelo menos 3 já foram ultrapassados, a saber: o clima (a concentração atmosférica de CO2 não deveria ter ultrapassado 350 partes por milhão e beira os 400 ppm na média anual), o ciclo do Nitrogênio (cuja remoção da atmosfera não deveria ter ultrapassado 35 milhões de toneladas e já chega a 121 milhões) e a taxa de extinção de espécies, que é pelo menos 10 vezes maior do que a suportada pelo ecossistema global e de 100 a 1000 vezes maior do que a do período pré-industrial. Pelo menos outros dois limites se encontram muito próximos de serem ultrapassados (a quantidade de Fósforo fluindo para os mares, que já é cerca de 80% do valor “permitido” e o nível de acidez dos oceanos do planeta avaliado pela relação com a saturação para a aragonita, mineral que compõe as conchas, os exoesqueletos e várias estruturas de um sem número de organismos marinhos, sendo que 80% da “distância” entre as condições pre-industriais e o limite seguro já foi “percorrida”). A situação de outros três está longe de ser confortável: avalia-se que dois terços da água doce globalmente disponível já esteja comprometida com atividades humanas, principalmente agropecuária e processos industriais e de geração de energia, além do uso doméstico, a concentração de ozônio na estratosfera, não pode cair em mais do que 2,4% e, como citamos, ultrapassamos os três quartos na proporção de ocupação das terras continentais. Dois limites (referentes às emissões de aerossóis e à contaminação química do ecossistema global) não foram estimados quantitativamente.

Cada chaminé de termelétrica é um
canhão apontado contra a atmosfera.
A queima de combustíveis fósseis é
uma declaração de guerra ao futuro.
A ultrapassagem perigosa dos limites do Sistema Terra funciona, nesse sentido, com a mesma lógica especulativa aplicada ao sistema financeiro, ao mercado de ações e outros. Como muitos capitalistas no próprio mercado financeiro, globalmente, em relação à natureza, o capital age de forma arriscada, irresponsável, na prática se baseando na expectativa de que as probabilidades se materializem a seu favor. Especula-se com as (extremamente baixas) chances de que se possa ultrapassar a concentração segura de CO2 ou de ozônio estratosférico e, com a “graça” de alguma tecnologia ainda não existente, se possa ou retornar a patamares seguros no futuro ou resistir aos impactos. A aposta, baseada apenas no desejo, nas possibilidades de “adaptação” é falsa, ignora as leis da Física e a dinâmica biogeoquímica dos sistemas naturais. Não considera, ao contrário do que se deveria, as chances muitíssimo maiores de que as mudanças ora em curso marchem no rumo da irreversibilidade e que sejam profundamente danosas, a curto, médio e longo prazo para a humanidade e, porque não dizer, toda a complexa teia de vida que recobre o planeta. Uma esquerda em consonância com seu tempo, neste século XXI, precisa fugir dessa lógica antimaterialista, irresponsável e especulativa, dessa fé cega em alguma solução tecnológica milagrosa, de que se tem o “controle da situação”. É preciso pensar de maneira radicalmente distinta da lógica do capital, não só acerca das relações entre nós, humanos, mas acerca da nossa relação com o restante da natureza. Clima não rima com lucro. Capital não rima com natureza.

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