Aleppo, Síria. Na lógica do capital, existe "oportunidade" de lucrar duas vezes com a guerra. A cada prédio destruído, a cada prédio reconstruído. |
Evolução ao longo do tempo das emissões, em bilhões de tone- ladas de carbono por ano por desmatamento e queima de com- bustíveis fósseis. Valores em CO₂ são 3,7 vezes maiores. |
E essa guerra se intensifica a cada dia. Na contramão das necessidades, as emissões de CO₂ quebraram novo recorde em 2017, chegando à cifra impressionante de 41 bilhões de toneladas (ou 11,2 bilhões de toneladas de carbono). É verdade que a reaceleração da indústria chinesa e a retirada dos EUA do Acordo de Paris pelo "Nero Laranja" foram golpes naquilo que parecia uma tímida tentativa de armistício, mas é de conhecimento público que mesmo que todas as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa apresentadas voluntariamente pelos signatários fossem cumpridas à risca ainda assim ficaríamos muito longe de atingir os objetivos do acordo.
Esse desprezo pelos limites de 1,5°C e 2°C estabelecidos pela comunidade científica (e aquiescidos no Acordo de Paris) coloca por terra qualquer noção ingênua de que este sistema poderia chegar racionalmente a uma autocontenção, reduzindo os lucros para preservar a estabilidade climática. A irracionalidade de um sistema que, dentro de um planeta limitado, insiste em expandir a demanda por matéria e energia para produção de mercadorias se revela por completo. Mas essa irracionalidade do capital não chega ao ponto de ser inteiramente autodestrutiva, e é esse o ponto em que quero chegar.
Não, os CEOs não estão nem um pouco "preocupados com o planeta", mas os principais quadros da burguesia internacional estão atentos, sim, à possibilidade de colapso civilizacional. E, usando uma metáfora que já utilizei antes, querem se assegurar que, se for mesmo inevitável que o Titanic colida com o iceberg, haja botes salva-vidas para a minoria de uberprivilegiados e que os portões da terceira classe estejam devidamente trancados. Não é pura irreflexão. Há um projeto pensado, que pode ser considerado perverso e irracional e até inviável por ter grande chance de, ao fim e ao cabo, dar tudo errado. A estratégia do capitalismo para o clima existe e é precisamente igual à guerra. Ganha ao destruir, ganha ao "consertar"!
6 corporações do setor de petróleo e gás faturaram juntas o equivalente a quase 1,3 trilhões de dólares, mais que o PIB do México, 15ª economia do mundo. |
Mas essas mesmas companhias estão de olho num futuro em que - condenado por emissões nunca mitigadas, ou pelo menos não mitigadas numa proporção sequer próxima do necessário - o clima global precise ser "consertado". A Shell há tempos anuncia seus projetos de CCS ("Carbon Capture and Storage", ou seja, Captura e Armazenamento de Carbono) e a ExxonMobil que cinicamente passou anos financiando generosamente o negacionismo climático, não fica atrás. Em outras palavras, uma companhia que pagou pseudo-cientistas, jornalistas e políticos conservadores para negarem o aquecimento global, ao ponto de mitos negacionistas inteiramente refutados permanecerem vagando como zumbis até hoje, está investindo em tecnologias para remover o "gás inofensivo" da atmosfera...
A ideia de "conserto tecnológico" do clima é fundada na ilusão de controle sobre um sistema altamente complexo e não-linear que pode reagir imprevisivelmente. |
A primeira é a Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono (BECCS) que, como mostramos em detalhe, se aplicada em grande escala por corporações, significará que elas estarão se apropriando de vez do uso das terras e da água e mesmo que contenha o caos climático nos levará à ultrapassagem de outros limites planetários (mudança no uso do solo, demanda de água doce, biodiversidade, ciclos biogeoquímicos).
A segunda, ainda pior, é a geoengenharia, nome genérico a uma variedade de técnicas visando manter o termostato planetário sob controle artificial e com chances enormes de ser um "remédio" pior do que a doença. Como mostramos em artigos anteriores em nosso blog, além de algumas propostas serem bizarras ou darem a um número muito pequeno de corporações um poder não pensando nem nas piores distopias de ficção científica, há um problema de natureza filosófica: uma ilusão de controle injustificável sustentada na falsa noção de que o clima - resultante da interação complexa e não-linear do conjunto de subsistemas do Sistema Terra - é apenas mais um "problema de engenharia".
Candidatas a serem as corporações da CCS e da geoengenharia, as atuais petroquímicas seguirão lucrando horrores com a destruição do sistema climático, almejando lucrar mais horrores com o suposto "conserto" do mesmo. Esse projeto econômico e político é um projeto em que os povos não têm vez, de extermínio mesmo de populações inteiras e que servirá de base para mais desigualdade, violência, xenofobia, fechamento de fronteiras e militarismo.
Eis que na lógica de uma declaração de guerra ao sistema climático, o que parece escapar no cálculo frio de lucrar dobrado feito pelo capital é a possibilidade de esse sistema reagir violentamente, contra-atacar com munições além daquelas que ora avaliamos que ele disponha. É aquilo que a pensadora belga Isabelle Stengers chama de "Intrusão de Gaia" ("Alguns consideraram que a Terra fosse um recurso a ser explorado, outros que era preciso protegê-la, mas ela nunca foi enxergada como poder assustador, que poderia nos destruir"), mas que bem poderia se chamar "Vingança de Medeia". Supertufões e superfuracões como Haiyan, Patricia, Irma e Maria, secas e ondas de calor recorde como as que vimos recentemente e até a aceleração da perda de gelo marinho e degelo dos mantos continentais da Groenlândia e Antártica podem disparar desequilíbrios imprevisíveis em territórios, fontes de água doce e sistemas de suporte à vida essenciais para muitas populações.
Mesmo que a curto prazo ainda haja alguma brecha para ganho monetário advindo da produção destrutiva, o que inclui o uso de combustíveis fósseis, a conta definitivamente não fecha numa escala intergeracional. Claro, o que é de se estranhar mesmo é que num contexto em que tal realidade só se torna mais e mais evidente, boa parte da esquerda ainda entenda que faz sentido queimar petróleo para financiar a educação e a saúde. Ou pior, que boa parte da esquerda - assimilando os discursos da tecnocracia a serviço do capital - seja seduzida pelas "soluções de engenharia" ou pela ilusão de um poder mágico da ciência e tecnologia.
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