James Hansen, um dos pioneiros dos estudos de mudanças climáticas, prestando depoimento ao Congresso dos EUA há 30 anos. De lá para cá, as condições se agravaram de maneira bastante acelerada. |
Os avisos vinham de muito antes
A realidade é que se sabia da tendência ao aquecimento do sistema climático provocado pela queima de combustíveis fósseis muito antes desse depoimento histórico. Em 1896, o cientista Svent Arrhenius, com a física conhecida na época estimou que uma duplicação na concentração atmosférica de CO₂ seria suficiente para elevar a temperatura do planeta em vários graus e publicou seus resultados num artigo intitulado "On the Influence of Carbonic Acid in the Air Upon the Temperature of the Ground" e disponível neste link.
Há 80 anos, Guy Callendar já mostrava que o planeta estava aquecendo, como esperado em função das emissões de CO₂ da queima de combustíveis fósseis. |
observatório de Mauna Loa. Os dados coletados desde então permitiram à comunidade científica verificar a elevação, ano a ano, dos níveis desse importante gás de efeito estufa que, por conta das gigantescas emissões humanas, acumula-se perigosamente na atmosfera terrestre. A elevação dessa concentração, que hoje domina completamente o ciclo anual associado ao crescimento e decaimento da folhagem da vegetação do hemisfério norte, é mostrada num gráfico muito famoso hoje em dia, a chamada Curva de Keeling.
A indústria de combustíveis fósseis estava atenta. E criminosamente escondeu o que sabia.
Desde antes das medições de Mauna Loa, havia consciência por parte de cientistas ligados à antecessora da ExxonMobil, a Humble Oil, do potencial que o uso intensivo de combustíveis fósseis teria em contribuir para a elevação das concentrações de CO₂ e a indústria, que já era obrigada a controlar outros poluentes (como óxidos de enxofre e material particulado) estava antenada para a possibilidade de algum tipo de controle sobre as emissões de gases de efeito estufa aparecer. Há 60 anos!
Instituto Americano do Petróleo solicitou ao Instituto de Pesquisa de Stanford (Stanford Research Institute, SRI) a elaboração de um relatório para responder se de fato a exploração de petróleo e outras fontes de energia fósseis representaria uma ameaça à estabilidade do clima do planeta. Claro, em se confirmando essa "suspeita", a indústria petroquímica estava ciente de que mais cedo ou mais tarde regulações dessas emissões estariam sendo debatidas e possivelmente implementadas, afetando seus negócios.
O relatório, que só veio a público recentemente, é bastante taxativo sobre vários pontos. Afirma que "se a temperatura da Terra crescer significativamente, vários eventos são esperados, incluindo o derretimento do manto de gelo da Antártica, a elevação do nível do mar, o aquecimento dos oceanos e um aumento na fotossíntese", que "a humanidade agora está envolvida num vasto experimento geofísico com seu ambiente, a Terra" e que "mudanças significativas de temperatura quase certamente ocorrerão por volta do ano 2000 e estas poderão trazer consigo mudanças no clima". Sobre a "dúvida" levantada pela indústria fóssil, o Instituto de Stanford responde que "os poluentes abundantes que geralmente ignoramos por terem pequeno efeito local, CO₂ e partículas submicrométricas, podem ser a causa de sérias mudanças na escala planetária", que apesar das incertezas "não parece haver dúvidas de que o dano potencial ao ambiente pode ser severo". Há 50 anos!
memorando aos seus superiores em que ele indicava o risco de um aumento de 1 a 3°C na média temperatura planetária em caso de duplicação do CO₂ atmosférico, mas com risco de esse valor, nos polos, chegar a algo como 10°C. As conclusões do memorando falavam de uma "janela de 5 a 10 anos" para se coletar a informação necessária acerca desses riscos e adotar medidas coerentemente. Essa janela obviamente se encerrava em 1988, ano em que James Hansen depôs no Congresso dos EUA e em que o IPCC foi fundado.
mais de 30 milhões de dólares.
As projeções de Hansen se confirmam
Hoje os modelos são mais avançados, incluindo um conjunto de processos físicos e biogeoquímicos que não estavam disponíveis para os modelos usados naquela época. Ao mesmo tempo, os recursos computacionais de memória e processamento avançaram exponencialmente e hoje a resolução espacial horizontal e vertical dos modelos é mais fina, permitindo uma melhor representação de diversos processos (embora fenômenos de escala menor do que dezenas de quilômetros como a formação de nuvens individuais permaneça tendo de ser "parametrizada"). No entanto, aparentemente os modelos mais simples, de 30 anos atrás, já eram capazes de capturar a tendência geral das mudanças climáticas e fazer projeções bastante confiáveis.
Os negacionistas, de maneira inaceitável, seguem desdenhando dos modelos climáticos. Nada mais falso. Quem os conhece por dentro sabe do esforço concentrado da comunidade científica em assegurar que eles representem adequadamente o conjunto dos processos físicos e biogeoquímicos que regem o sistema climático terrestre e dos avanços nestas 3 décadas. Mais do que isso, trabalhando com modelos, fazemos incansavelmente testes desses modelos com situações para as quais há observações a fim de validá-los. Sim, os modelos funcionam!
Projeções de temperatura para diversos cenários até 2300. O número indica a quantidade de modelos que simularam cada cenário em cada período (certas simulações vão só até 2100). Fonte: IPCC AR5 |
Com efeito, como indicado no gráfico, o próprio relatório do IPCC coloca que, em relação ao período de referência de 1986 a 2005, as temperaturas devem subir, no intervalo de confiança de 90%, a depender do cenário, de 0.3°C a 1.7°C (RCP2.6, forte mitigação e remoção de carbono), 1.1°C a 2.6°C (RCP4.5), 1.4°C a 3.1°C (RCP6.0) ou 2.6°C a 4.8°C (RCP8.5, cenário sem mitigação). Lembrando que as temperaturas do período de referência já são cerca de 0,6°C acima dos valores pré-industriais.
A situação é muito mais grave hoje
Após 80 anos das evidências do aquecimento global mostradas por Callendar, 60 anos do início das medidas de Mauna Loa, 50 anos do relatório de Stanford, 40 anos do memorando de Black à direção da Exxon e 30 anos do depoimento de Hansen no Congresso, em que pé estamos?
Há 30 anos, 79% da demanda energética era suprida a partir de fontes fósseis. Hoje, mais de 300 mil aerogeradores instalados depois, de possíveis 500 GW de capacidade solar fotovoltaica instalada ao final deste ano, sequer avançamos em termos relativos. Nada menos que 81% da energia, incluindo transportes, dos dias de hoje é obtida queimando petróleo, carvão ou gás. E isso é uma sentença de morte.
É algo que vai para além da sabotagem aberta da indústria fóssil, que escondeu o que ela sabia para financiar uma campanha orquestrada de negacionismo climático e com isso inviabilizou qualquer chance que por ventura houvesse de avanços, primeiro através do Protocolo de Kyoto e agora através do Acordo de Paris.
Sim, em ambos os casos o governo dos EUA atuou como um agente direto da indústria de combustíveis fósseis, com Bush não ratificando o primeiro e Trump retirando o país do segundo. Mas o buraco é mais embaixo. É sistêmico. Globalização, crescimento econômico, produção para consumo e descarte, obsolescência programada, tudo isso mais que anulou qualquer avanço que as renováveis possam ter trazido. Como escrevi recentemente, o capitalismo declarou guerra ao Sistema Terra. Sua eterna lógica de expansão, que penetra inclusive em projetos políticos situados ideologicamente à esquerda, suas redes produtivas extremamente longas e em última instância globais, a cegueira imposta pelo lucro de curto prazo, a sua negação de valores coletivos e ecológicos o tornam incompatível com a solução da crise climática.
O clima é como uma aeronave entrando em pane e o capitalismo, como um piloto que insiste em manter o curso inalterado. |
Terrível, mas um alerta muito bem fundamentado e ablsoluamente necessário e urgente!
ResponderExcluir