Pessoas ilhadas aguardam resgate em Moçambique após passagem do Ciclone Tropical Idai. Foto: Chris Sherrard (Irish Mirror) |
Mas, como em tantas outras ocasiões, eventos similares produzem impactos maiores - e um número bem maior de mortes - quanto mais pobres e vulneráveis forem os países e as comunidades sobre os quais eles se abaterem.
Como antes nas Filipinas, em Serra Leoa, etc., a tragédia, que finalmente parece chamar a atenção do mundo, veio na forma do Ciclone Tropical Idai, que se formou a partir de uma depressão tropical no Canal de Moçambique, entre o sudeste do continente africano e Madagascar. Três países pobres (Malawi, Zimbabwe e particularmente Moçambique) foram duramente castigados, com o número impressionante de 1,7 milhão de pessoas afetadas e, no momento em que escrevo, mais de 700 mortes confirmadas.
Aqui me sinto obrigado a fazer uma confissão sobre como têm-me incomodado os memes, tweets, textinhos e eventuais textões que batem na tecla "não tem 'ajuda humanitária' em Moçambique porque lá não tem petróleo". Não é que eu discorde de maneira absoluta da ideia. Pelo contrário, entendo o sentido. É feito um contraponto ao cinismo dos governos ultradireitistas de EUA e Brasil no caso da Venezuela, em que a tese da "ajuda humanitária" certamente escondia outra agenda. Só que a repetição do meme expõe os limites de como muitas pessoas estão encarando a tragédia.
O Idai, como toda tempestade tropical formada numa atmosfera com mais de 400 ppm de CO2, tende a adquirir poder devastador maior do que nas condições, por exemplo, do clima pré-industrial |
Nesse contexto, o abandono da África à sua própria sorte, gritante no caso de Moçambique, Malawi e Zimbabwe, é uma amostra terrível da profunda desigualdade por trás das mudanças climáticas. Os habitantes do Zimbabwe emitem em média 0,8 toneladas de CO2-equivalente por ano. As emissões de Moçambique e Malawi são ainda menores: 0,3 e 0,1 tons/pessoa/ano. Sem indústria ou agricultura intensiva, esses países não tem responsabilidade alguma sobre o caos climático. Para se ter uma ideia, a média global per capita das emissões está em torno de 5 tons/pessoa/ano de CO2-equivalente, ou seja, 17 vezes maior que as emissões de Moçambique. E o que vem de países ricos é algo muito maior ainda!
Tirando os maiores produtores de petróleo, que por isso aparecem no topo do ranking das emissões, fica evidente que o modo de vida dos países ricos é insustentável. As emissões por habitante dos EUA chegam a 16,5 tons/pessoa/ano. Austrália e Canadá, 15,4 e 15,1, respectivamente. Em outras palavras, o "estadunidense médio" tem um impacto climático equivalente a 55 "moçambicanos médios". O "canadense médio" conta como 151 habitantes de Malawi em termos da pegada de carbono. Carro privado, grande, de alta cilindrada, movido a combustível fóssil e trocado constantemente; consumo excessivo de bens diversos, de roupas a eletrônicos; dieta com muita carne, principalmente de ruminantes; viagens aéreas... isso não se sustenta.
Praticamente todos os cenários que limitam o aquecimento global a 1,5°C, recomendado pelos cientistas, implicam redução de ~50% nas emissões até 2030 e emissão zero em torno de 2050. |
Façam as contas comigo. Numa lógica de equidade climática, isso significa que as emissões per capita dos EUA têm de ser reduzidas por um fator de 7 vezes. As dos habitantes de Moçambique poderiam até crescer por um fator de 8! Em uma década, esse crescimento permitiria a pessoas de países muito pobres da África acesso a energia, água potável, saneamento, hospitais, escolas, universidades e infraestrutura de monitoramento, prevenção e assistência em caso de eventos extremos (num mundo condenado, pelo aquecimento global, a um clima de extremos, todos precisaremos, e muito). Isso poderia ser feito a tempo inclusive antes de precisarmos encarar um desafio ainda maior, o de zerar completamente as emissões até 2050.
Mas essas iniciativas necessárias para elevar o padrão de vida dos países mais pobres precisam ser bancadas por quem se beneficiou da queima de combustíveis fósseis para acumular riqueza. Por isso, não é caridade, nem mesmo "ajuda" que os países pobres expostos ao caos climático precisam. É de compensação, de indenização. "Ajuda" é algo meio facultativo, uma decisão moral, um "ato de bondade". O que precisamos é de mais do que isso: é obrigar quem é responsável pelo aquecimento global a arcar com os danos que ele provoca.
O problema é que o dinheiro que poderia ser usado para compensar e indenizar aqueles que não tem responsabilidade sobre a mudança do clima tem fluído ao contrário do que deveria. Desde que o Acordo de Paris foi aprovado, 33 bancos investiram 7 trilhões de reais na indústria de combustíveis fósseis. Uma fração desse dinheiro teria ajudado a descarbonizar a economia e, ao mesmo tempo, indenizar preventivamente os países com baixas emissões mas, pelo contrário, o sistema segue financiando o caos climático, a devastação e a morte. Tão destrutivo e assassino quanto a indústria de combustíveis fósseis é o capital financeiro que a alimenta!
Excelente o texto,o consumo exagerado,desenfreado mostra suas consequências .
ResponderExcluirParabéns pela reflexão!
ResponderExcluirBom dia Professor. Como posso entrar em contato? Sou estudante do curso de Física no IFSertão e creio que o sr. é a pessoa mais indicada para me informar quanto a viabilidade de um projeto que tenho em mente. Abraços.
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