A casa do Sr. Carbono |
Cresce a urgência de conter emissões
IPCC, um documento importantíssimo: o SR15, o Relatório Especial sobre Aquecimento Global de 1,5°C (cujo sumário está disponível neste link).
O relatório conclui que estamos em rota para ultrapassar 1,5°C de aquecimento global com rapidez, a não ser que sejam tomadas medidas radicais. A década de 2006-2015 já teve temperaturas 0,87°C acima do período de 1850 a 1900 e o planeta segue aquecendo a uma taxa de 0,2°C por década. Também evidencia que qualquer política razoável de adaptação requer que os números do Acordo de Paris, isto é, aquecimento limitado a 2°C e preferencialmente a 1,5°C, sejam obedecidos.
Mas o que chama mesmo atenção são os cenários que mantêm a temperatura do planeta dentro do limite de 1,5°C. Todos eles demandam redução muito significativa das emissões ao longo da próxima década, com uma queda desde o patamar de emissões anuais de 40 GtonCO₂ (bilhões de toneladas de dióxido de carbono) para 20 GtonCO₂ já em 2030! Além disso, requer emissões líquidas em torno de zero já pouco depois de 2050. O relatório também destaca que emissões de metano, fuligem e óxido nitroso também precisam diminuir acentuadamente (cortes de pelo menos 35% nas emissões de metano até 2050 sendo necessários).
Mudanças climáticas têm tudo a ver com desigualdade
Relatório da OXFAM mostra relação direta entre emissões de gases de efeito estufa e desigualdade econômica |
Os países considerados pobres e alta- mente endividados (fonte: Wikipédia) |
Países-membros da OCDE |
Não é à toa que Kevin Anderson, cientista do Centro Tyndall de pesquisa em mudanças climáticas, aponta em entrevista que, mantidas inalteradas as emissões dos restantes 90%, se os 10% mais ricos da humanidade tiverem suas emissões reduzidas ao equivalente à média do habitante da Europa (o que não representa um padrão de vida "baixo"), as emissões globais já cairiam em aproximadamente 1/3. Ou seja, não há caminho mais fácil e imediato para cortar as emissões globais de gases de efeito estufa que não seja incidindo sobre o andar de cima.
Ou o "American Way of Life" ou o Clima, Senhor Carbono! Não se pode ter os dois!
Sr. Carbono é um privilegiado em nossa sociedade e embora seja certamente parte de uma minoria (algo mais para o 1% do "topo da pirâmide") está muito distante do punhado de bilionários que existe no planeta (pouco mais de 1500 indivíduos). Mas é exatamente porque há uma quantidade razoável de Senhores Carbono, o impacto dos mesmos termina sendo significativo.
O carro do Sr. Carbono é uma picape, digamos uma picape Amarok, que, segundo o site do INMETRO, emite até 245 gramas de CO₂ por quilômetro rodado. Pode parecer pouco. Acontece que o Sr. Carbono vai diariamente ao trabalho no seu carrão (sozinho, é claro), contribuindo com o engarrafamento (que ele, óbvio, atribui aos outros) e viaja com ele nos fins de semana, para desfrutar das serras e praias. Vamos supor que o Sr. Carbono rode 20.000 km por ano em seu emissor particular. Neste caso, lá se vão, todo ano, 4,9 toneladas de CO₂ na atmosfera. E mesmo que não fizesse mais nada a não ser rodar no carrão, o Sr. Carbono já emitiria mais que o argentino médio (e suas 4,75 tons/ano) e quase tanto quanto o espanhol médio (5,03 tons/ano).
Rodar 20 mil quilômetros num "carrinho" desses já produz uma pegada de carbono quase igual à média dos moradores da Espanha... |
A dieta do Sr. Carbono não é excepcionalmente elaborada, mas ele curte uma carninha... Aliás, não dispensa uma picanha e em média consome 203g de carne bovina por dia. Puxa, um bifinho! Acontece que a pegada de carbono varia muito entre diferentes alimentos e a carne de ruminantes tem disparadamente mais impacto climático do que outras fontes de proteína. A cada kg de carne bovina, por exemplo, são emitidos gases de efeito estufa (principalmente metano, da fermentação entérica), cujo impacto equivale a 27 kg de CO₂. Ao final do ano, isso resulta em 2,0 toneladas de CO₂-equivalente. (Para nós, que já debatemos em textos anteriores essa temática, nenhuma surpresa: aquela churrascada com os amigos com 12 kg de carne são piores do que uma viagem de ida-e-volta daqui de Fortaleza ao Rio de Janeiro). O restante da dieta do Sr. Carbono não inclui nada de muito estranho (massas, grãos e, claro, leite e derivados, como aquele queijinho metido que vai bem com um vinho ou uma cerveja mais elaborada) e acrescenta 1,5 toneladas à pegada de carbono. A alimentação do Sr. Carbono termina totalizando 3,5 tons/ano (o grosso por conta da carne de ruminantes) e a pegada total já vai para 12,63 tons/ano. Mais um pouco, ele se torna um canadense honorário...
A eletricidade e o uso de gás de cozinha também se somam e mesmo o Brasil tendo um perfil de baixa pegada de carbono na geração elétrica ela não é nula. Por exemplo, a estimativa é que no Nordeste Brasileiro, que tem um perfil intermediário em nosso país, sejam emitidos 123g de CO₂-equivalente na produção de cada kWh. Como o Sr. Carbono tem um consumo certamente acima da média da população brasileira, assumir 500 kWh/mês não é tão distante da realidade. Isso nos dá 0,74 tons ao final do ano pela eletricidade, graças ao fato de que hidrelétricas apoiadas por eólicas constituem grande parte da matriz de geração em nosso país (caso o Sr. Carbono morasse nos EUA, é possível que esse valor fosse quatro vezes maior ou até mais!). Não perca as contas, pois agora temos 13,37 tons emitidas pelo Sr. Carbono.
Fiz uma simulação de consumo no site da calculadora de pegada de carbono e a conclusão não pode ser outra: vivemos - e pior, desejamos viver - de forma insustentável! |
Viver como o Sr. Carbono é o sonho incentivado por toda a propaganda, todo o apelo de consumo, toda a ideologia de consumismo e individualismo e até mesmo por uma certa "teologia da prosperidade". Mas além de questionável sob vários pontos de vista, do econômico ao moral, o fato matematicamente verificado aqui, é que esse estilo de vida não cabe no planeta. É básico. O que é vendido como o paraíso aqui na Terra, esse "american way of life" (que é até fichinha para os bilionários), mas que milhões de pessoas perseguem, é incompatível com um clima estável. Outro modo de viver, outro modo de se relacionar com a natureza, outras fontes de satisfação social deixaram de ser um "papo hippie". Tornou-se uma necessidade incontornável para evitar uma completa calamidade global.
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