sábado, 19 de dezembro de 2015

O Irrelevante, o Insuficiente e o Necessário. Parte III: INDCs

Vilarejo de "Needmore", no Texas, onde
nunca moraram mais do que 100 pessoas
Abrimos parênteses neste momento na série de artigos de balanço do Acordo de Paris para retomarmos outro conjunto de publicações, intitulada "O Irrelevante, o Insuficiente e o Necessário", no qual já analisamos o plano de mudanças climáticas de Obama e as metas de mitigação apresentadas pelo Governo Dilma antes da COP21. Na verdade, neste ponto, as duas séries se cruzam, pois o Acordo de Paris depende inteiramente das chamadas INDCs, as Contribuições Pretendidas Nacionalmente Determinadas (Intended Nationally Determined Contribution)

INÉPCIA, NEGLIGÊNCIA, DEBILIDADE, COVARDIA 

O documento de Paris dedica uma seção inteira do preâmbulo, com nada menos do que 10 parágrafos, às "contribuições pretendidas". Tais contribuições foram aparecendo ao longo dos últimos meses e hoje 160 delas já foram submetidas, podendo ser acessadas neste link. Por não ter força obrigatória, o Acordo de Paris é profundamente dependente da "ambição" dessas contribuições voluntárias. O termo "ambição" ou "ousadia" são, claro, de um ponto de vista da Física do Clima, completamente impróprios, pois lançar mão de todas as medidas possíveis para inverter inteiramente a tendência de crescimento das emissões é, na melhor das hipóteses, apenas bom senso. "Ousadia" mesmo, no mau sentido, é o que temos feito, pensando estar desafiando as Leis da Física, ou permanecendo à espera de algum milagre, como se fosse possível continuar queimando combustíveis fósseis, desmatando, sustentando enormes rebanhos de gado bovino, abusando de fertilizantes sintéticos e da produção de gases de refrigeração sem que as consequências de um sistema climático superaquecido não fossem se abater sobre nós.

Como já colocamos noutro texto, o próprio documento da COP21 expressa sua "preocupação" com o fato de que as contas não batem: o objetivo pretendido é manter o aquecimento global "bem abaixo de 2°C", tentando ainda preservá-lo aquém de 1,5°C, mas as INDCs, no nível em que estão, com todos os principais emissores já tendo submetido suas contribuições nos coloca numa rota para um aquecimento muito acima desses níveis.

Com efeito, uma análise da organização "Carbon Tracker" mostra que a maioria dos principais emissores mundiais não apresentou metas condizentes nem com suas possibilidades, muito menos com as necessidades de cortes globais nas emissões.

A Carbon Tracker classifica as INDCs em quatro categorias: "modelo", aquelas cujas metas vão além do necessário para limitar o aquecimento a 2°C e que portanto seriam as únicas coerentes com o objetivo anunciado do Acordo de Paris; "suficientes", o que, em sendo adotado por todos os países nos colocaria com boas chances de evitar ultrapassarmos 2°C de aquecimento global; "intermediárias", que, apesar de não serem metas desprezíveis, caso todas as INDCs caíssem nessa categoria seria quase certo ultrapassarmos esse limiar e, por fim, as "inadequadas", contribuições muito distantes daquelas necessárias. Para essa classificação, é adotado um critério de justiça climática, isto é, países mais ricos, mais desenvolvidos, com maior responsabilidade histórica e presente nas emissões são mais exigidos do que países mais pobres, com baixo nível de desenvolvimento e menores emissões.

Análise das INDCs pela Carbon Tracker. Contribuições real-
mente aceitáveis são as raríssimas mostradas em cor verde no
mapa, o que exclui todo grande emissor e todo país rico.
O resultado aparece no mapa ao lado, para 32 INDCs, cobrindo 59 países, incluindo a INDC agregada da União Europeia, o que representa mais de 80% das emissões mundiais. Dessas, a Carbon Tracker não avaliou nenhuma como modelo. Cinco foram consideradas suficientes: Costa Rica, Butão, Etiópia e Marrocos, ou seja, nenhum grande emissor, nenhum país desenvolvido. Boa parte das INDCs analisadas caiu na categoria "intermediária", incluindo China (24,0% das emissões), EUA (15,5%), União Europeia (10,9%), Índia (6,4%), Brasil (2,1%) e México (1,4%) e algumas, incluindo países muito ricos e grandes emissores ficaram na última categoria ("inadequadas" ou, por que não dizer, "vergonhosas"?). Este é o caso da Rússia (4,9% das emissões globais), Japão (2,9%), Indonésia (1,6%), Canadá (1,5%), Coréia do Sul (1,4%), Arábia Saudita (1,3%) e África do Sul (1,2%).

AONDE AS INDCS PODEM NOS LEVAR

No nível atual, as INDCs nos tiram do pior cenário de aquecimento global (o de "negócios como sempre", baseado no crescimento ininterrupto das emissões de gases de efeito estufa, liquidando de vez com qualquer possibilidade de evitarmos um aquecimento global acima de 2°C em pouco mais de duas décadas). Mas conduzem a uma situação muitíssimo distante do objetivo apresentado pelo Acordo de Paris de permanecer "muito abaixo" de 2°C de aquecimento em relação ao período pré-industrial.

Um relatório disponibilizado pela própria Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (a UNFCCC) mostra que "os níveis de emissões agregadas globais resultantes das INDCs devem ser 34-46% maiores em 2025 e 37-52% maiores em 2030 em relação ao nível de emissões globais de 1990; 29-40% em 2025 e 32-45% em relação ao nível de emissões em 2000 e 8-18% em 2025 e 11-22% em 2030 em relação ao nível de emissões em 2010.

Embora, como reconheça esse mesmo relatório, isso represente uma ligeira queda nas emissões per capita em relação a esses períodos anteriores (8-9% em relação a 1990 e 4-5% em relação a 2010), esse crescimento absoluto nas emissões é receita para o desastre. Afinal de contas, o sistema climático não reconhece "emissões per capita" nem "emissões por unidade de PIB" como métricas legítimas. O desmantelo causado pelas atividades humanas é proporcional à quantidade de moléculas de CO2 e demais gases de efeito estufa na atmosfera e isso depende das emissões totais, pura e simplesmente, o que torna nossas mediações econômicas e populacionais irrelevantes do ponto de vista da resposta do sistema físico. Ainda que estas sejam fundamentais para estabelecermos de forma mais justa, entre nós, a partilha da conta (cuja cobrança já chegou faz tempo), a mensagem é clara: o total dessa conta é inegociável. A natureza não negocia.

O site Climate Interactive mostra um placar atualizado do
cenário de aquecimento à medida em que entram novas
INDCs. Os avanços que temos, em relação ao cenário de
"negócios como sempre" ainda é muitíssimo limitado e
completamente distanciado do objetivo anunciado no
Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a valores
"bem abaixo" de 2°C.
O diagnóstico do relatório, nesse sentido, não deixa dúvidas: comparado com os níveis de emissões consistentes com cenários de no máximo 2°C de aquecimento global, as INDCs nos colocam 19% acima daquilo que poderia estar sendo emitido em 2025 e 35% acima em 2030. Inaceitável, nitidamente desastre a caminho. Se é verdade que no momento da elaboração do relatório da UNFCCC, somente 117 INDCs haviam sido submetidas, a atualização dessa informação não nos permite aumentar a dose de otimismo. O site "Climate Interactive" oferece uma maneira bastante fácil de visualizar, a informação mais atualizada e a projeção que ele traz é a de que, com dados das INDCs disponíveis até 14 de dezembro, reduzimos o risco climático no final do século XXI em um grau Celsius, mas ainda estamos apontando para um alvo completamente errado: sem esforços posteriores e maiores do que os atualmente colocados nas INDCs, um aquecimento, em relação aos níveis pré-industriais, de nada menos do que 3,5°C...

UM "DILEMA DO PRISIONEIRO" EM ESCALA GLOBAL...

O Acordo de Paris não é legalmente vinculante, não estabelece obrigações de fato, não prevê nenhum tipo de punição ou sanção. Nesse sentido, a liberdade dada para os Estados nacionais ao lidar com a questão climática contrasta inteiramente com as regras draconianas existentes, por exemplo, no comércio internacional e que são estabelecidas no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio) visando proteger os interesses do grande capital. Como se sabe, é comum a aplicação de sanções a países que tentam estabelecer regras tributárias internas ou outros mecanismos de proteção da produção em escala nacional. Ah, se o clima fosse tão protegido quanto o mercado!

Matriz de possibilidades do "dilema do prisioneiro": a coope-
ração mútua resulta em uma pena pequena, mas o prisioneiro
pode ser seduzido pela possibilidade de ficar inteiramente li-
vre, caso traia o parceiro, denunciando-o, desde que este não
o traia, e permaneça em silêncio. No cenário em que ambos
traem, no entanto, a pena para ambos é maior do que se os
dois cooperassem entre si.
Assim sendo, a consecução dos objetivos apresentados pelo Acordo de Paris, pelo menos no quadro atual, depende de um posicionamento voluntário dos Estados nacionais, o que pode nos colocar perigosamente numa situação que lembra a do "dilema do prisioneiro" da Teoria de Jogos. Este "dilema" consiste, na verdade, de uma situação em que dois prisioneiros, sem saberem da posição um do outro, têm a opção de acusarem ou não um ao outro. As quatro combinações possíveis resultantes dessas possibilidades aparecem na matriz ao lado. A situação é tal que uma pena leve é aplicada a ambos se ambos permanecerem em silêncio, sem um denunciar o outro. No entanto, se um dos dois trair e denunciar o outro, e este permanecer em silêncio, o resultado é que o que traiu fica livre e a pena máxima é aplicada ao traído. No caso da traição mútua, ambos são punidos, com uma pena intermediária.

O dilema do prisioneiro é um exemplo de como a busca de uma vantagem individual em detrimento de arcar com o ônus da cooperação pode resultar, no fim, em um prejuízo maior para ambas as partes. E no caso da crise climática, a tentação de um ou outro Estado nacional em "levar vantagem", seja anunciando metas de mitigação fracas, seja não cumprindo metas mais razoáveis anunciadas (o que, sem mecanismos de sanções, se torna sempre uma brecha perigosa), é bastante evidente. Isso infelizmente aparece como possibilidade, não apenas em vários Estados nacionais cujos regimes políticos são cada vez mais corrompidos no caminho de plutocracias, de governos-marionetes controlados por corporações, mas também em sociedades em que o baixo nível de consciência da gravidade da crise climática dificulte - na lógica de adotar posturas demagógicas para reeleição ou continuidade do domínio do grupo ou partido político à frente do governo - a adoção de medidas que tragam algum sacrifício embutido no contexto de corte significativo de emissões.

O poderio do capital e um sistema de representação precário (sem real poder de decisão e sobretudo sem instrumentos que permitam amplo conhecimento de causa em meio à sociedade para que esta possa decidir) podem, assim, amarrar-nos à lógica das vantagens imediatas, de curto prazo, às decisões mesquinhas e/ou com segundas intenções, à maquiagem de resultados ou à fraude e sabotagem deliberadas, enfim, em um dilema do prisioneiro em escala global, que inviabilize definitivamente as soluções necessárias para a crise climática e feche de vez uma janela de oportunidade já extremamente estreita. É preciso, portanto, libertarmo-nos da lógica capitalista de horizonte limitado do ponto de vista do tempo e dos valores, da ilusão de crescimento econômico eterno, da obtenção de vantagens na competição mesquinha. Com ou sem nossa ajuda consciente, o sistema climático se livrará dos grilhões do lucro e da ganância das corporações e da mesquinharia de governos nacionais sem visão da biosfera terrestre e da humanidade em seu conjunto. Mas com nossa ajuda, isso se dará a bem menor custo, com bem menores danos. Principalmente, se dará preservando em grande parte - pelo menos ainda é possível falar assim - a nós mesmos.

... OU GENTILEZA GERA GENTILEZA?

Assim como no dilema do prisioneiro, na questão climática, o dano conjunto é minimizado se a escolha for a de cooperação mútua. Distribuindo de forma justa os sacrifícios, de modo que os países mais ricos e historicamente de maiores emissões arquem com a maior parte do ônus da transição para outro sistema produtor, livre de combustíveis fósseis, voltado para o atendimento das condições fundamentais para a dignidade humana e harmonizado com os fluxos naturais de matéria e energia, com seus ciclos hidrológico, do carbono, do nitrogênio, etc.

Mas neste caso, há uma diferença. Ainda que possa haver vantagens de curto prazo em não cooperar (caso, no dilema do prisioneiro, em que o traidor não é denunciado e sai livre), a crise climática, em não sendo resolvida - e já - atingirá a todos em algum momento. Países ricos que se recusarem a abdicar de privilégios e a assegurarem recursos para uma saída justa e duradoura que evite um caos climático total podem eventualmente "levarem a melhor" no curto prazo, mas sucumbirão - no tempo posterior - à provável combinação de tempestades mais severas, secas mais prolongadas, crises migratórias com dezenas ou centenas de milhões de refugiados climáticos, condições de esgarçamento do tecido civilizatório que favoreçam o florescimento de grupos terroristas, etc. Para além do dilema do prisioneiro, na crise climática não há alternativa que não seja a da cooperação e a de estabelecimento de regras justas para seu enfrentamento. Um ciclo virtuoso, em que propostas de mitigação cada vez mais fortes e que sirvam de exemplo a outros, é necessário.

Mas da busca do lucro não emerge "gentileza". As amarras do tempo acelerado do Antropoceno e a obediência à suposta sacralidade do mercado precisam ser enfrentadas por outra força social, com outra consciência para além do atendimento de demandas de curto prazo, enraizado globalmente e articulado mundialmente. Só um movimento social solidário em escala planetária pode ser capaz de, num primeiro momento, exercer uma pressão, no âmbito de cada Estado nacional, para que as metas de mitigação destes sejam ampliadas e, num segundo, apresentar-se como alternativa sistêmica. O movimento climático que, ainda incipiente, mas já promissor, saiu às ruas do mundo todo às vésperas da COP21, é o melhor candidato a cumprir esse papel.


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